Se todas as luzes do mundo se apagassem, se todas as nossas seguranças desaparecessem, se todas as nossas forças nada mais pudessem, seria ainda o momento propício para que nos abandonássemos em Deus. Nada poderia nos dispensar do enfrentamento da “Noite Escura”. Cito apenas o início do poema de São João da Cruz para dela falar:
“Em uma noite escura
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Estando já minha casa sossegada.
Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! Ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Estando já minha casa sossegada...”
O cristão, ainda que com medo, vai ao encontro desta noite, pois sabe que é através desta noite escura que brilhará a luz de Deus. Atenho-me a esta frase: “pela secreta escada, disfarçada...” A escada secreta, de que nos fala o poema, é símbolo da Cruz que deve ser carregada quotidianamente – “Quem quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga”.
Escada que haveremos de subir (entenda-se escada como a cruz que devemos com confiança carregar). A mesma escada já mencionada no Antigo Testamento, quando retrata o sonho de Jacó. A escada que liga o céu e a terra (Gn 28,12), e pela qual todos devemos subir se quisermos entrar na glória e contemplar as delícias do paraíso, e que com o tempo passou a ser identificada como a escada mística do Amor Divino, segundo São Bernardo e Santo Tomás de Aquino: a alma saindo de si mesma e subindo até Deus, pois o amor é semelhante ao fogo: “Sempre sobe para as alturas, com apetite de engolfar-se no centro de sua esfera”.
Apresento, portanto, os dez degraus desta escada.
Primeiro degrau: A alma fica enferma salutarmente – “Conjuro-vos, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu Amado, lhe digais que estou enferma de amor” (Ct 5,8). Uma enfermidade que não é para morrer, mas para glorificar a Deus, porque deste modo se desfalece para o pecado e para tudo aquilo que não agrada a Deus. Em nada encontra gosto, apoio ou consolo; em nada pode afirmar-se, a não ser em Deus.
Segundo degrau: A busca de Deus sem cessar – “Buscando-O de noite em seu leito, não O achou” “Levantar-me-ei e buscarei Aquele a quem ama a minha alma” (Ct 3,1-2), e ainda o Sl 104,4 – “Buscai sempre a face de Deus, e, buscando-O em todas as coisas, em nenhuma reparai, até achá-Lo”. Tudo que se pensa, fala, come, cuida... tudo que se faça é em relação ao Amado. Numa palavra, a alma vive intensamente ânsias de amor.
Terceiro degrau: A alma age e recebe o calor para não desfalecer – há um incêndio de amor que vai ardendo na alma, de modo que ela se sente abrasada: a alma tem grandes pesares e penas por causa do pouco que faz pelo Amado. Sente que por mais que faça ainda é pouco e acompanhado da imperfeição.
Quarto degrau: Disposição para sofrer sem se fatigar em favor de seu Amado. Santo Agostinho afirmou que havendo amor, todas as coisas grandes, graves e pesadas se tornam nada – “Põe-me como um selo sobre teu coração, como um selo sobre teu braço; porque o amor é forte como a morte, e o zelo do amor é tenaz como o inferno” (Ct 8,6). A alma abrasada de amor tão sincero anda sempre em busca de seu Deus e com o desejo de padecer por Ele. A alma assim não se tem nem descansa coisa alguma até que encontre o Amado.
Quinto degrau: A alma deseja e cobiça a Deus impacientemente – a alma está sempre pensando em encontrar o Amado. Quando não vê seu desejo concretizado, desfalece em sua ânsia –“Suspira e desfalece minha alma, desejando os átrios do Senhor”. A alma que ama ou vê o Amado ou morre. A alma se nutre de amor, pois conforme a fome é a fartura.
Sexto degrau: A alma corre para Deus com grande ligeireza, e muitas vezes consegue n’Ele tocar – Não desfalece, corre pela esperança, porque o amor deu forças à alma; a fez voar com muita rapidez – “Os santos que esperam em Deus adquirirão sempre novas forças, terão asas como as da águia” (Is 40,31). Esta ligeireza deve-se ao fato de que a caridade nela está dilatada e a purificação quase pronta.
Sétimo degrau: A alma se tornou ousada com veemência. Alcança de Deus tudo quanto apraz pedir, bem como disse Davi – “Deleita-te no Senhor e dar-te-á Ele as petições do teu coração” (Sl 36,4) e ainda “Beije-me com um beijo de Sua boca” (Ct 1,1). É Deus quem confere esta ousadia e confiança, mas necessário é que a alma mantenha a humildade, para que não caia dos degraus já alcançados. O amor que sente pelo Amado não lhe confere a menor possibilidade de suplicar erroneamente.
Oitavo degrau: Apoderar-se do Amado e unir-se a Ele – A alma segura não larga o seu Amado –“Achei o que ama a minha alma, agarrei-me a Ele e não o largarei mais” (Ct 3,4). Não se permanece neste degrau exceto por breves tempos; tudo isto só será pleno na glória futura.
Nono degrau: A alma arde suavemente – é o degrau dos perfeitos que ardem no amor de Deus com muita suavidade. Ardor cheio de doçura e deleite, produzido pelo Espírito Santo, devido a sua união com Deus. Arder interiormente em suavíssimo amor como aconteceu aos Apóstolos em Pentecostes (cf. São Gregório).
Décimo degrau: A alma assimila-se totalmente a Deus em virtude da clara visão que ela possui - São poucos os que aqui chegam. Purificados pelo amor não passam pelo purgatório – “Bem aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). E São João assim exprimiu – “Sabemos que seremos semelhantes a Ele” (1Jo 3,2). A alma não terá a mesma capacidade de Deus, mas será a imagem de Deus por participação até que chegue o grande dia que o Senhor disse –“Naquele dia já não me perguntareis coisa alguma” (Jo 16,23). Por ora, haverá sempre algo escondido para a alma, na proporção do que lhe falta para chegar à total assimilação com a Divina Essência – Deus.
Resumindo:
01 - A alma fica enferma salutarmente;
02 - A busca de Deus sem cessar;
03 - A alma age e recebe o calor para não desfalecer;
04 - A disposição para sofrer sem se fatigar em favor de seu Amado;
05 - A alma deseja e cobiça a Deus impacientemente;
06 - A alma corre para Deus com grande ligeireza e muitas vezes consegue n'Ele tocar;
07 - A alma se tornou ousada com veemência;
08 - Apoderar-se do Amado e unir-se a Ele;
09 - A alma arde suavemente;
10 - A alma assimila-se totalmente a Deus em virtude da clara visão que ela possui.
Conhecedores da escada, subamos, sem jamais desistir. Enfrentemos nossas noites escuras. Carreguemos nossa cruz...
PS: A apresentação acima tem como fonte a Introdução de Pe. Felipe Sainz de Baranda, Prepósito Geral da Ordem os Carmelitas Descalços, na Ed. Do Pe. Simeão da Sagrada Família: “Juan de La Cruz, Obras Completas” para a obra de São João da Cruz – “Noite Escura”. In São João da Cruz – Doutor da Igreja – Obras Completas – Ed. Vozes, Petrópolis – RJ.
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