“...extirpai vossas paixões
enquanto são jovens,
antes que se endureçam em
vós e que não tenhais que sofrer”.
A
Conferência sobre o rancor, escrita por São Doroteu de Gaza (séc. VI), muito
nos enriquece ao celebramos o 6º Domingo do Tempo Comum, em que ouvimos a
passagem do Evangelho de Mateus (Mt 5,17-37).
“Evágrio
disse: ‘Encolerizar-se e contristar a alguém são coisas impróprias ao monge’.
E também: ‘Quem tem triunfado da cólera, tem triunfado dos demônios. Porém,
aquele que é presa desta paixão está em absoluta oposição à vida monástica’.
Que
há que dizer de nós que, sem limitar-nos à irritação e a cólera, chegamos às
vezes ao rancor? O que temos de fazer a não ser chorar nosso estado tão
lastimoso e indigno do homem? Sejamos vigilantes, irmãos, cooperemos com Deus,
para preservar-nos do amargor desta funesta paixão.
Talvez
alguém se desculpe com seu irmão pela perturbação causada ou a ferida
infligida, porém, mesmo depois da desculpa, permanece incomodado e conserva pensamentos
contra seu irmão. Ele não deve dar importância a esses pensamentos e
rechaçá-los imediatamente. Isso é o rancor, e para não colocar-se em perigo
detendo-se nele é preciso, como disse, muita vigilância; é necessária a
desculpa e é imperativo o combate.
Ao
pedir desculpas simplesmente para cumprir com o preceito, curou-se da cólera
momentaneamente, mas não lutou ainda contra o rancor: conserva-se o rancor
contra o seu irmão. Uma coisa é o rancor, outra a cólera, a irritação, e outra
a desavença.
Vou
dar-vos um exemplo que vos fará compreender: alguém acende um fogo. A princípio
não consegue mais do que um pequeno carvão. Isso representa a palavra do irmão
que nos ofende. Vede, não é mais do que um pequeno carvão, porque, o que é uma
simples palavra de vosso irmão? Se a suportais, extinguis o carvão. Se, ao
contrário, começas a pensar: ‘Por que disse isso? Posso bem responder-lhe!
Se não quisesse ofender-me, não teria me falado assim! Que ele saiba que eu
também posso prejudicá-lo’.
Como
alguém que acende um fogo, vós estais lançando ali raminhos ou qualquer outra
coisa e produzis fumaça, que é a perturbação. A perturbação não é mais que o
movimento e a afluência de pensamentos que despertem e inquietam o coração. E
essa excitação, chamada também ira, impulsiona a vingar-se do ofensor. Como
disse o abade Marcos: ‘A malícia introduzida nos pensamentos excita o
coração; mas, dissipada com a oração e a esperança, perece’.
Suportando
uma simples palavra de vosso irmão, vocês podem extinguir o pequeno carvão
antes que a perturbação apareça. Porém, inclusive esse ânimo perturbado ainda
podeis acalmá-lo facilmente enquanto nasce, com o silêncio, com a oração, com
uma simples satisfação que brote do coração. Se, ao contrário, continuais a
produzir fumaça, ou seja, exaltando e excitando o vosso coração, pensando:
“Por
que me disse aquilo? Eu também posso lhe responder!”, a afluência e o
entrechoque dos pensamentos avivando e ebulindo o coração provocam a chama da
exasperação. Esta, segundo Basílio, é somente a ebulição do sangue em torno ao
coração. Isso é a irritação, chamada também rancor. Se quiserdes, ainda podeis
extingui-la antes que se transforme em cólera. Mas se continuais a
perturbar-vos e a perturbar aos demais, fazeis como o que joga troços de madeira
à fogueia para avivar o fogo: a lenha se transforma em brasas, e isto é a
cólera.
É
o mesmo que dizia o abade Zósimo quando lhe pediram que explicasse esta
sentença: ‘Onde não há irritação, não há combate’. Se ao começo da
perturbação, assim como aparecem a fumaça e as chispas, alguém se adianta e
acusa a si mesmo e oferece uma satisfação, antes que se eleve a chama da
irritação, permanece em paz.
Mas
se, provocada a irritação, esta não se acalma e persiste na perturbação e na
exaltação, se parece ao que lança madeira ao fogo e continua a alimentá-lo até
que se torne em brasas vivas. Como as brasas, feitas carvão e postas de lado,
subsistem anos sem se corromper, mesmo que se lance água em cima, assim a
cólera que se prolonga se converte em rancor e já não é possível livrar-se dele
a não ser vertendo sangue.
Disse-vos
a diferença dos quatro graus: compreendam-nos bem. Agora sabeis o que é a
primeira perturbação, o que é a exasperação, o que é a cólera e o que é o
rancor. Percebeis como uma só palavra chega a produzir um mal tão grande? Se
desde o começo se tivesse censurado a si mesmo, se tivesse suportado
pacientemente a palavra do irmão, sem querer se vingar, nem responder duas ou
cinco palavras por uma só, e responder ao mal com o mal, se teriam evitado
todos esses males.
Por
isso não cesso de recomendar-vos, extirpai vossas paixões enquanto são jovens,
antes que se endureçam em vós e que não tenhais que sofrer. Pois uma coisa é
arrancar uma planta pequena e outra desarraigar uma grande árvore”. (1)
Em
nossos relacionamentos, pode acontecer que vivamos experiências semelhantes. No
entanto, urge que o rancor seja cortado na raiz para que não cresça e fique
impossível de ser extirpado de nosso coração, como São Doroteu nos ensinou.
É
preciso sempre dar um passo adiante na fraternidade, no amor e na sinceridade
de nossa fé, e tão somente assim, seremos sal da terra e luz do mundo.
Se
não cultivarmos o rancor e ressentimentos em coração, poderemos rezar com amor
e confiança a oração que o Senhor nos ensinou: – “O Pai Nosso”, sobretudo a
súplica do perdão:
“Perdoai-nos as nossas ofensas, assim
como nos perdoamos a quem nos tem ofendido...”.
(1) Lecionário Patrístico Dominical – Editora Vozes – 2013 – pág.
1135-1137
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