“Misericordia et misera”
Seis anos passados, por ocasião do encerramento do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, o Papa Francisco nos agraciou com a Carta Apostólica “Misericordia et misera”, com vistas a continuar os propósitos e iniciativas surgidas ao longo de sua realização, e ora destaco alguns trechos.
“Misericordia et misera”, as duas palavras que Santo Agostinho utilizou para descrever o encontro de Jesus com a adúltera (cf. Jo 8, 1-11), em alusão ao amor de Deus que vem ao encontro do pecador: “Ficaram apenas eles dois: «a mísera e a misericórdia» Johannis 33,5), um ícone de tudo que celebramos no Ano Santo.
Ressalta que a misericórdia não pode ser reduzida a um parêntese na vida da Igreja, mas deve se constituir na sua própria existência, tornando visível e palpável a verdade profunda do Evangelho, pois tudo se revela na misericórdia; tudo se compendia no amor misericordioso do Pai.
No encontro de Jesus com a pecadora, não se encontram o pecado e o juízo em abstrato, mas uma pecadora e o Salvador. Jesus ao fixar nos olhos daquela mulher, leu o seu coração, com desejo de ser compreendida, perdoada e libertada:
– “A miséria do pecado foi revestida pela misericórdia do amor... ajuda-a a olhar para o futuro com esperança, pronta a recomeçar a sua vida; a partir de agora, se quiser, poderá «proceder no amor» (Ef 5, 2)”. (n.1)
O Papa também menciona a passagem do Evangelho em que uma pecadora, num banquete na casa de um fariseu (cf. Lc 7, 36-50), ungiu com perfume os pés de Jesus, banhando-os com as suas lágrimas e os enxugando com os seus cabelos, e muito foi perdoada, porque muito amou.
Fala-nos do perdão dado por Jesus no alto da Cruz: «Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34), de modo que, nada que um pecador arrependido coloque diante da misericórdia de Deus pode ficar sem o abraço do Seu perdão.
Sendo assim, a misericórdia é a ação concreta do amor, que transforma e muda a vida de cada um de nós através do perdão.
O perdão experimentado pelas duas mulheres (a adúltera e a pecadora) faz brotar alegria no coração: “As lágrimas da vergonha e do sofrimento transformaram-se no sorriso de quem sabe que é amado. A misericórdia suscita alegria, porque o coração se abre à esperança duma vida nova. A alegria do perdão é indescritível, mas transparece em nós sempre que a experimentamos. Na sua origem, está o amor com que Deus vem ao nosso encontro, rompendo o círculo de egoísmo que nos envolve, para fazer também de nós instrumentos de misericórdia (n.3)
Não podemos permitir que a misericórdia experimentada, a alegria que ela nos dá, seja roubada devido às várias aflições e preocupações, por isto precisa estar bem enraizada no coração, para olharmos o dia-a-dia com serenidade.
Numa cultura marcada pela tecnologia, acompanhada da tristeza e solidão, urge que sejamos testemunhas da esperança e da alegria verdadeira, não nos enganando com felicidade fácil com “paraísos artificiais”, uma vez que a alegria verdadeira é sempre no Senhor (Fl 4, 4; cf. 1 Ts 5, 16) (cf n.3).
O vento impetuoso e salutar do Ano Santo nos desafia a não ficarmos na indiferença e, uma vez acolhido o sopro vital do Espírito, continuarmos o que foi iniciado.
Ele acena para as novas sendas a serem percorridas, levando a todos o Evangelho da Salvação, com a necessária “conversão pastoral”, a fim de não entristecermos o Espírito, com a força renovadora da Misericórdia. (n.5)
Continuaremos celebrando a misericórdia, porque ela está presente na oração da Igreja: no Ato Penitencial; no tempo quaresmal; na Oração Eucarística; depois do Pai Nosso; na oração antes do abraço da paz. De fato, cada momento da Celebração Eucarística faz referência à misericórdia de Deus (n.5).
Destaca de modo especial os Sacramentos de Cura: Penitência e Unção dos Enfermos, que favorecem a experiência da misericórdia de Deus, pois o amor de Deus nos precede, acompanha e permanece conosco, não obstante nossos pecados (n.5, n.8).
“O Sacramento da Reconciliação precisa de voltar a ter o seu lugar central na vida cristã; para isso requerem-se sacerdotes que ponham a sua vida ao serviço do «ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18), de tal modo que a ninguém sinceramente arrependido seja impedido de aceder ao amor do Pai que espera o seu regresso e, ao mesmo tempo, a todos seja oferecida a possibilidade de experimentar a força libertadora do perdão (n.11).
Renovou a iniciativa das 24 horas para o Senhor, nas proximidades do IV Domingo da Quaresma, que goza já de amplo consenso nas dioceses e continua a ser um forte apelo pastoral para vivermos intensamente o Sacramento da Confissão (n.11).
Expressou gratidão aos Missionários da Misericórdia pelo valioso serviço oferecido para tornar eficaz a graça do perdão (n.9), de modo que todos os Sacerdotes devem se empenhar para oferecer oportunidade de confissão a quantos precisarem, vivendo a misericórdia de Deus de modo especialíssimo no Sacramento da Confissão.
É preciso que o sacerdote seja magnânimo de coração, ciente de que cada penitente lhe recorda a sua própria condição pessoal: pecador, mas ministro da Misericórdia (n.10).
Acena para a importância da Catequese, da Palavra de Deus proclamada, da homilia, que deve ser a expressão da verdade que anda de mãos dadas com a beleza e o bem, fazendo vibrar o coração dos crentes. Daqui decorre a necessária preparação pelo Sacerdote, como nos falou na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium n.142.
Cada vez mais deve ser acentuada a importância da Bíblia, que narra as maravilhas da misericórdia de Deus: «Toda a Escritura é inspirada por Deus e adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça» (2 Tm 3, 16)
Enfatiza a importância da Leitura Orante como fonte de espiritualidade, assim como a valorização do Dia da Bíblia, num domingo do Ano Litúrgico.
Favorecer a “Lectio divina” sobre as Obras de Misericórdia à luz da Palavra de Deus e da Tradição espiritual da Igreja, levando a gestos e obras concretas de caridade (n.7).
Uma questão que merece toda a atenção está no parágrafo número 12, sobre o pedido de perdão para o pecado do aborto:
“Em virtude desta exigência, para que nenhum obstáculo exista entre o pedido de reconciliação e o perdão de Deus, concedo a partir de agora a todos os sacerdotes, em virtude do seu ministério, a faculdade de absolver a todas as pessoas que incorreram no pecado do aborto. Aquilo que eu concedera de forma limitada ao período jubilar fica agora alargado no tempo, não obstante qualquer disposição em contrário.
Quero reiterar com todas as minhas forças que o aborto é um grave pecado, porque põe fim a uma vida inocente; mas, com igual força, posso e devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido que pede para se reconciliar com o Pai. Portanto, cada sacerdote faça-se guia, apoio e conforto no acompanhamento dos penitentes neste caminho de especial reconciliação”
Também concede a recepção válida e lícita da absolvição sacramental dos pecados dos que frequentam as Igrejas oficiadas pelos sacerdotes da Fraternidade de São Pio X (n.12).
No parágrafo seguinte, acena para o rosto da consolação que a misericórdia também possui «Consolai, consolai o meu povo» (Is 40, 1: “Enxugar as lágrimas é uma ação concreta que rompe o círculo de solidão onde muitas vezes se fica encerrado.
Todos precisamos de consolação, porque ninguém está imune do sofrimento, da tribulação e da incompreensão. Quanta dor pode causar uma palavra maldosa, fruto da inveja, do ciúme e da ira! Quanto sofrimento provoca a experiência da traição, da violência e do abandono! Quanta amargura perante a morte das pessoas queridas! E, todavia, Deus nunca está longe quando se vivem estes dramas. Uma palavra que anima, um abraço que te faz sentir compreendido, uma carícia que deixa perceber o amor, uma oração que permite ser mais forte... são todas expressões da proximidade de Deus através da consolação oferecida pelos irmãos” (n.13).
Grande ajuda também pode ser o silêncio; porque em certas ocasiões não há palavras para responder às perguntas de quem sofre: “O próprio silêncio pertence à nossa linguagem de consolação, porque se transforma num gesto concreto de partilha e participação no sofrimento do irmão” (n.13).
Também nos fala da família, da alegria do amor que se vive nas famílias, que é também o júbilo da Igreja, como mencionada em sua Exortação (Amoris Laetitiae n.17), em meio às dificuldades, provações, pelas quais passa, mas a família constitui num lugar privilegiado para se viver a misericórdia (Amoris Laetitiae n.291-300). A necessidade de acompanhá-las, solidifica-las na experiência viva da misericórdia.
Acena para a importância da presença do sacerdote no momento difícil que passa a família, a hora da morte de um de seus membros, sobretudo numa cultura em que se banaliza a morte, até mesmo a reduzindo a ficção ou a ocultando:
“Nós vivemos a experiência das exéquias como uma oração cheia de esperança para a alma da pessoa falecida e para dar consolação àqueles que sofrem a separação da pessoa amada”(n. 15).
O término do Jubileu e o fechar da Porta Santa exigem que a porta da misericórdia do nosso coração permaneça sempre aberta.
A misericórdia renova e redime, porque é o encontro de dois corações: o de Deus que vem ao encontro do coração do homem. Experimentada a misericórdia, não há como recuar.
Daqui decorre a necessidade de dar espaço à imaginação a propósito da misericórdia para dar vida a muitas obras novas, fruto da graça (n.17).
Volta à prática das obras de misericórdia (corporais e espirituais), que continuam a tornar visível a bondade de Deus, num mundo marcado por sinais de pecado, morte, sofrimento, pobreza e muito mais (n.18):
“...as obras de misericórdia corporal e espiritual constituem até aos nossos dias a verificação da grande e positiva incidência da misericórdia como valor social. Com efeito, esta impele a arregaçar as mangas para restituir dignidade a milhões de pessoas que são nossos irmãos e irmãs, chamados conosco a construir uma «cidade fiável»” (n.18).
...O mundo continua a gerar novas formas de pobreza espiritual e material, que comprometem a dignidade das pessoas. É por isso que a Igreja deve permanecer vigilante e pronta para individuar novas obras de misericórdia e implementá-las com generosidade e entusiasmo” (n.19).
“.... ponhamos todo o esforço em dar formas concretas à caridade e, ao mesmo tempo, entender melhor as obras de misericórdia. Com efeito, esta possui um efeito inclusivo pelo que tende a difundir-se como uma nódoa de azeite e não conhece limites. E, neste sentido, somos chamados a dar um novo rosto às obras de misericórdia que conhecemos desde sempre. De fato a misericórdia extravasa; vai sempre mais além, é fecunda. É como o fermento que faz levedar a massa (cf. Mt 13, 33), e como o grão de mostarda que se transforma numa árvore (cf. Lc 13, 19) (n.19).
“...O caráter social da misericórdia exige que não permaneçamos inertes mas afugentemos a indiferença e a hipocrisia para que os planos e os projetos não fiquem letra morta. Que o Espírito Santo nos ajude a estar sempre prontos a prestar de forma efetiva e desinteressada a nossa contribuição, para que a justiça e uma vida digna não permaneçam meras palavras de circunstância, mas sejam o compromisso concreto de quem pretende testemunhar a presença do Reino de Deus” (n.19).
O Papa nos interpela na construção da cultura de misericórdia, com base na redescoberta do encontro com os outros: uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara quando vê o sofrimento dos irmãos. (n.20):
Esta cultura da misericórdia forma-se na oração assídua, na abertura dócil à ação do Espírito, na familiaridade com a vida dos Santos e na solidariedade concreta para com os pobres (n.20).
Concluindo, o Papa exorta que a continuidade da experiência do Jubileu faça chegar a todos a carícia de Deus através do testemunho dos crentes (n.21).
Vivemos o tempo da misericórdia, sentindo a presença de Deus, experimentando a sua ternura, de modo especial na solidariedade para com os pobres e buscando o perdão de Deus, como pecadores que somos, a fim de sentirmos a mão de Deus Pai que nos acolhe e nos abraça (n.21).
Como sinal concreto, o Papa exorta para que seja celebrado no 33º Domingo do Tempo Comum, o Dia Mundial dos Pobres, fazendo deste momento um modo mais digno para a preparação e vivência da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, que Se identificou com os mais pequenos e os pobres e nos há de julgar sobre as obras de misericórdia (cf. Mt 25, 31-46):
“Será um Dia que vai ajudar as comunidades e cada batizado a refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência de que não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa casa (cf. Lc 16, 19-21).
Além disso este Dia constituirá uma forma genuína de nova evangelização (cf. Mt 11, 5), procurando renovar o rosto da Igreja na sua perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia” (n.21).
Finaliza nos confiando à ajuda materna de Maria, a Mãe da Misericórdia que nos acompanha no testemunho do amor, pois ela nos indica o perene olhar para Jesus, “o rosto radiante da misericórdia de Deus” (n. 22).
Leia a Carta na íntegra acessando:
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