sábado, 27 de julho de 2024

“Nosso coração se dilatou”

                                                   


 “Nosso coração se dilatou”

“Pois aquele que é amado,
sem temor passeia no íntimo do coração do que ama”


A Liturgia das Horas nos apresenta uma Homilia do Bispo São João Crisóstomo (séc. IV), sobre a segunda Carta de Paulo aos Coríntios, possibilitando-nos uma reflexão sobre a verdadeira caridade.

“Nosso coração se dilatou. Aquilo que produz calor costuma dilatar. Assim é próprio da caridade dilatar, pois é uma virtude cálida e fervente.

Ela abria também a boca de Paulo e lhe dilatava o coração. ‘Não amo só de boca, diz ele, meu coração, em verdade, harmoniza-se com o amor; por isso falo confiante, com toda a voz e toda a mente’.

Nada mais amplo do que o coração de Paulo que, à semelhança de um enamorado, abraçava a todos os fiéis com intenso amor, sem dividir e enfraquecer a amizade, mas conservando-a indivisa.

(...) Aquele que é amado, sem temor passeia no íntimo do coração do que ama.(...) Em várias passagens, extraindo textos de cada epístola sua, pode-se ver de que amor incrível ardia para com os fiéis.

Aos romanos escreve: Desejo ver-vos: e muitas vezes fiz o propósito de ir até vos; e também: Se de qualquer modo puder ir fazer-vos voa visita.

Aos gálatas escreve: Meus filhinhos, aos quais gero de novo; e aos efésios: Por esta razão dobro meu joelhos por vós.

E aos tessalonicenses: Qual a minha esperança ou gáudio, ou coroa da glória? Não sois vós? Dizia também carregá-los em suas cadeiras e em seu coração.

Igualmente aos colossenses, escreve: Desejo que vejais vós e aqueles que ainda não viram meu rosto, a grande luta que sustento por vós, para que vossos corações se fortaleçam.

Aos tessalonicenses: À semelhança de uma mãe que acalenta seus filhos, assim amando-vos, desejávamos vos dar não só o Evangelho, mas nossas vidas. Não estais apertados em nós.

Não diz apenas que os ama, mas que é amado por eles, para deste modo atraí-los melhor. Pois assim escreve: Tito chegou e contou-nos vosso desejo, vossas lágrimas, vosso zelo”.

Notável o enamoramento do Apóstolo por Jesus Cristo. Este fez de Cristo a razão de seu viver, sua vida foi transformada; fez deste amor fonte de relacionamento amoroso com as comunidades fundadas e acompanhadas.
Somente nutridos da Fonte do Amor, enamorados por Ele, é que chegaremos à maturidade do amor pela Igreja que somos.

Invoquemos o Fogo do Espírito, para que aqueça e dilate nosso coração; e assim, “os amados” de Deus, no íntimo dele passeiem sem medo algum, como nos falou São João Crisóstomo.

Reflitamos:

- Sinto-me enamorado por Cristo?
- A caridade dilata meu coração para que nele caibam os irmãos e irmãs da comunidade que faço parte?

- Como vivencio este amor por Cristo em relação a Sua Igreja?
- O que significa para mim a comunidade que participo?

- O que mais toca meu coração ao contemplar o testemunho de Paulo em relação a Cristo e a Sua Igreja?

Concluindo, no coração onde o amor está presente, alargado, redimensionado fica, para amar na mesma medida de Deus: um Amor verdadeiramente imensurável!

Aprendamos com a Parábola do joio e do trigo

                                                         

Aprendamos com a Parábola do joio e do trigo

No sábado da 16ª Semana do Tempo Comum, ouviremos a passagem do Evangelho de Mateus (Mt 13,24-30) sobre a Parábola do trigo e do joio.

Vejamos o que nos disse Santo Agostinho em duas citações:

“Os maus existem no mundo ou para que se convertam, ou para que por eles, os bons, exercitem a paciência”;

 “Se há alguém que errou, que no próximo encontro ele possa ver em nossos olhos que estamos reconciliados com ele, que não o condenamos mais, porque a Palavra de Deus nos fez cair o gadanho da mão” .(1)

Podemos afirmar que a Parábola do joio e do trigo é um apelo à humildade e à misericórdia que se irradia. É um compromisso concreto que assumimos ao celebrar a Eucaristia dentro e fora da comunidade:

Tomemos consciência de que todos nós somos trigo e joio ao mesmo tempo. Apenas Jesus foi o puro trigo, sem joio algum, ou seja, não conheceu o pecado, ao contrário, o destruiu.

Jesus é o grão que um dia caiu na terra e morreu. Um grão que foi transformado em Pão Eucarístico, que vem a nós e Se entrega por nós como Salutar Alimento, para que nos tornemos trigos de Deus.



(1) “O Verbo Se fez carne” – Raniero Cantalamessa - Editora Ave Maria - 2013 - p. 157 

Pacientes e misericordiosos sejamos

                                                

Pacientes e misericordiosos sejamos

A Liturgia da Palavra do sábado da 16ª Semana do Tempo Comum nos apresenta a passagem do Evangelho de Mateus (Mt 13, 24-30).

Através desta Parábola, contemplamos o ser de Deus, que é paciente, cheio de misericórdia, indulgente e clemente.

Urge que saibamos silenciar para a contemplação da face e do ser divino, que Se manifesta na misericórdia, que faz chover sobre bons e maus.

A Parábola que ouvimos na passagem, favorece a nossa conversão e o nosso crescimento espiritual, pois nos questiona, exorta, anima, ensina, fortalece a fé e nos leva ao mergulho tão necessário dentro de nós mesmos.

É como injeção de ânimo, de esperança e renovação de compromissos com o Reino de Deus, e ao mesmo tempo convida-nos ao cuidado,   multiplicando na vigilância, a oração, o diálogo, o silêncio, pois dentro de cada um de nós pode muito bem coexistir uma belíssima plantação de trigo, mas sufocada pela indesejável plantação do joio, sem culpar terceiros.

Sendo assim, expulsemos todo o desânimo, a apatia, a indiferença, os prejulgamentos, os preconceitos. Creiamos na força da Palavra, que acolhida no mais profundo de nós, em chão fértil, frutos abundantes jamais faltarão.

Abandonemos toda a atitude simplista de condenação, porque de joio e de trigo todos temos um pouco. Cuidado haveremos de tomar de não excomungar, excluir, extirpar, eliminar o pecador junto com seu pecado.

Seja a paciência a expressão da confiança na Misericórdia Divina e na esperança de que todos temos de ser melhores.

Mais paciência e misericórdia (não como sinônimo de conivência), menos julgamento e condenação, nos farão comunidades mais pascais, evidentemente zelando pelo amadurecimento e crescimento do testemunho, sem jamais esvaziar e mutilar a Palavra Divina e sem negar e contratestemunhar a Eucaristia que celebramos - Mistério de Amor e Comunhão. 

Muito mais do que uma fábula

                                                          

Muito mais do que uma fábula

Houve uma reunião com todos os animais, e cada um deles deveria dizer o que tinha de específico, que o identificasse diante dos humanos, e que despertasse o coração até mesmo dos mais insensíveis. Foi lavrada uma ata para que tomássemos conhecimento.

Vamos então ouvir a ata:
“Aos vinte dias do mês de julho de dois mil e onze, começou a reunião com todos os animais da floresta. Após longa espera pelos últimos, foi dada a palavra a quem quisesse dizer o que o caracteriza cada um diante dos olhos humanos.

O primeiro a tomar a palavra foi o coelho:
— “Sou ágil, rápido. Nada pode me acompanhar. Admiram-me pela rapidez e também pela fertilidade. Claro que tenho também outras qualidades, como também limitações. Nenhum animal é perfeito, bem sabemos.”

O segundo foi a águia:
— “Faço voos altos. Contemplo as coisas lá de cima. Minhas asas me sustentam em voos invejáveis. Muitos ficam olhando para minhas manobras. Como o coelho, também tenho outras qualidades; meu processo de renovação e prolongamento da vida, mas também tenho limitações. Nenhum animal é perfeito, bem sabemos.”

Em seguida, um peixe por um momento apontou no mar e gritou bem alto:
— “Também faço parte desta reunião. Não posso ficar muito tempo fora da água, terei que ser breve. Mergulho nas profundezas do mar, conheço coisas que muitos animais não conhecem. Não tenho tempo para descrevê-las, quanto mais profundo o mergulho mais coisas posso revelar.”

Quando começou a falar de suas limitações (e  uma delas é não poder ficar muito tempo fora da água), mergulhou novamente no mar. Se tempo tivesse com certeza diria: “nenhum animal é perfeito, nós peixes, também aqui o sabemos”.

Depois de um longo silêncio a tartaruga falou de sua especificidade, de como é conhecida pelos humanos, sua lentidão e sua vida longa (décadas). Mas a reunião tinha tempo limitado, e como havia muitos animais, nem todos puderam falar. A tartaruga nem tempo teve de falar sobre suas naturais limitações; mal pode se esquivar como os demais e nos ensinar dizendo: “Nenhum animal é perfeito, bem sabemos”.

Não havendo mais tempo para outros pronunciamentos, foi encerrada a reunião e para constá-la...”

Fábula? Muito mais do que uma fábula.
Como Igreja, temos muito que aprender com esta fábula. Somos diferentes, como os animais nos falaram. Temos nossas especificidades, nossas virtudes e limites. As diferenças se tornam nossas riquezas. Um só é o Espírito, diversos os dons, ministérios e carismas como nos falou o Apóstolo Paulo (1Cor 12 e Ef 4).

Assim é a Igreja, uma comunidade de eleitos, cada um podendo dar o melhor de si com amor para que o Reino de Deus aconteça.

Temos que aprender com o coelho a agilidade e a fecundidade. Há coisas que não podem ser morosas — o amor, a caridade, a solidariedade, o perdão, a partilha, a alegria, a comunhão, a fidelidade, a doutrina... Fecundidade do Espírito — quando a Ele nos abrimos não nos faltam respostas aos desafios da pós-modernidade. Urge que sejamos fecundados pela ação do Espírito para fazer frutificar a Semente do Evangelho.

Aprender com a águia a fazer voos mais altos, sondando as alturas divinas com a ajuda do Espírito. Buscar as coisas do alto onde Deus Se encontra (Cl 3,1). Buscar o amor, a verdade, a justiça, o direito, a paz, a fraternidade, a liberdade, o respeito, a defesa da vida e sua beleza sacral, bem como da Terra, a nossa Casa Comum, numa necessária ecologia integral.

Como os peixes, mergulhar nas profundezas dos Mistérios Divinos. Mergulhar profundamente no Mistério do Amor Trinitário, como diz aquele belíssimo canto “quero mergulhar nas profundezas do Espírito de Deus, descobrir suas riquezas, em meu coração...”. Fazer o mais desafiador e necessário mergulho dentro de nós mesmo para Deus encontrar. Afinal, Ele quis habitar no mais profundo de nós; somos Seu templo, Sua morada, e Ele o nosso mais Belo Hóspede...

Aprender com as tartarugas! “Mas é lenta demais”, dirão. Mas assim é a Igreja, assim são as “coisas” divinas, assim é o Reino de Deus como muito bem vemos nas Parábolas de Jesus (Mt 13) e no Salmo 85. Deus é assim conosco: lento na ira, paciente e misericordioso.

Ele espera pacientemente nossa conversão, pois somos lentos em construir vínculos verdadeiramente fraternos, lentos ao perdoar, lentos em compreender as imperfeições do outro, como se fossemos a medida da perfeição.

Paciência, pois o joio e o trigo crescem juntos (cf. Mt 13,24-30) e Deus, no tempo oportuno, fará a colheita, ou ainda, fará a separação dos peixes bons e ruins... Não nos cabe julgar, rotular, classificar, excluir ninguém da Misericórdia e Salvação Divina.

Acolhida a fábula, poderíamos nos colocar em atitude de revisão de nosso caminhar.

Reflitamos:

- O que ela nos diz?
- Em que temos que nos converter e melhorar?

Precisamos ter coragem para olharmos para nós mesmos, para nossa comunidade e, com misericórdia, fazermos as mudanças necessárias para melhor o Reino servir, a ponto de podermos dizer:

O Reino de Deus é nossa maior riqueza, nossa mais bela pérola, nosso mais belo tesouro...”. 

Paciência e misericórdia divinas

                                                         

Paciência e misericórdia divinas

A Liturgia da Palavra do sábado da 16ª Semana do Tempo Comum nos apresentará a passagem do Evangelho de Mateus (Mt 13, 24-30).

Algumas passagens bíblicas, de modo especial os Salmos, parecem oferecer uma concepção de um Deus impaciente, que queima as etapas, em que os apelos à vingança são bastante frequentes (1Rs 18,40; SI 82 e 108).

Mas há outras passagens mais importantes que desmentem essa impressão, e podemos afirmar que a Escritura é o Livro da paciência divina, que sempre adia o castigo do seu povo (Ex 32,7-14).

Os Profetas falam da cólera de Deus, que não é o último e definitivo momento da manifestação divina: o perdão sempre vence.

A Bíblia nos apresenta Javé, rico em graça e fidelidade, e sempre pronto a retirar Suas ameaças, quando Israel volta novamente ao caminho da conversão (Sb 12,12.16-19).

O Profeta Elias, cheio de zelo, em experiência pessoal, compreende que Deus não está no furacão ou no terremoto; Ele Se apresenta na brisa leve, no sopro do vento mais delicado (1Rs 19,9-13).
No Novo Testamento, os Apóstolos Tiago e João são censurados por causa de seu desejo de fazer cair raios sobre os samaritanos que não acolhem Jesus (Lc 9,51-55; Mt 26,51).

Esta foi a Boa-Nova do Reino inaugurada por Jesus, anunciada a todos e, de modo especial para os pecadores, sem exclusão de ninguém no Seu Reino: todos são a ele chamados, todos podem aí entrar.

Em todos os momentos, Jesus encarnou e viveu a paciência divina, e nisto consiste a missão da Igreja, Corpo de Cristo, encarnar entre os homens a paciência de Jesus.

Como Igreja, temos que revelar no mundo a verdadeira face do amor, sem jamais destruir as pontes de comunicação com a força misericordiosa de Deus, como vemos no Evangelho (Mt 13,24-43).

Vejamos o que nos diz o Comentário do Missal Dominical:


“Na terra, o trigo está sempre misturado com o joio, e a linha de demarcação entre um e outro não passa pelas páginas dos registros paroquiais ou pelas fronteiras dos países; está no coração e na consciência de cada homem. Deve-se sempre recordar que a separação entre os bons e os maus só será feita depois da morte”.(1)

Aprendamos com Deus a viver a divina paciência diante das dificuldades do mundo, com os que pensam e agem diferente de nós.

Ela é alcançada quando nos reconhecemos diante de Deus como frágeis criaturas modeladas pela Mão Divina, e nos configuramos a Jesus Cristo, que Se apresentou a nós manso e humilde de coração.

Cabe a Deus o julgamento final, não nos cabe catalogar as pessoas entre trigo e joio. Ao contrário, é preciso que nosso coração seja entranhado pela misericórdia e paciência divina, para que sejamos puro trigo de Deus em Sua seara.

Somente a abertura e acolhida do Espírito e a vivência da Palavra que Jesus nos comunicou, nos farão verdadeiramente puros trigos de Deus.


(1) Missal Dominical – Editora Paulus - pág. 749. 

Rezando com a matemática (XVIIDTCB)

                                                             

Rezando com a matemática

Um discípulo voltava de suas aulas matinais com a fome própria de um jovem, mas inquieto até que pudesse fazer uma pergunta ao mestre: “Como falar de Deus a partir das operações matemáticas (adição, subtração, multiplicação e divisão)?”

O mestre propôs um itinerário que deveria ser percorrido ao final de quatro tardes, para melhor proveito e assimilação. Outros discípulos também manifestaram desejo de acompanhar este caminhar vespertino. E assim aconteceu em quatro pores do sol.

Por volta das dezessete horas, mestre e discípulos saíram e,  pouco a pouco, o aprendizado da primeira operação: adição. Talvez porque seja de mais fácil aprendizado, mas tão bela e indispensável quanto as demais.

Primeira tarde: como falar de Deus a partir da adição?
Olhando para uma floresta encantadora pela diversidade de árvores, plantas, pequenos animais silvestres, entraram pela trilha adentro. Em determinado momento, o mestre disse: “assim é a floresta, não composta apenas de uma árvore ou espécie animal, isoladamente, mas a soma de todos eles, numa perfeita harmonia.

Assim fez Deus ao criar ao mundo: na soma das parcelas, das unidades, das diferenças, a totalidade de Sua obra. A folha que se soma a outra, forma a copa da árvore; o pequeno animal que soma ao outro, a fauna, e assim, o ecossistema é garantido”.

Pouco mais adiante, uma encantadora cachoeira. O mestre apontou para a mesma e disse: “vejam a água que cai abundantemente e encanta nossos olhos. Nada veríamos se cada gota não se somasse à outra, em gotas incontáveis que formam este pequeno lago, no qual agora vamos molhar nossos pés, porque hoje está frio, mas se verão fosse...”

Voltando à última palavra do mestre sobre a operação em questão: assim é a convivência entre nós. Quando estamos juntos, em ajuda mútua, somando nossos esforços, tudo fica mais fácil, menos tempo consumimos no alcance de objetivos traçados. Somemos sonhos, esperanças, forças, dons e o que de melhor Deus possa em nós ter colocado. Juntemos nossas histórias como parcelas de uma grande somatória, que possa ser a escrita de uma bela história a ser lembrada e contada com o deleite de quem soube somar, ousar, buscar, sonhar...

Segunda tarde: como falar de Deus a partir da subtração?
Durante o dia, os discípulos retomavam o que ouviram na véspera, e ansiavam a segunda tarde e a operação da subtração.

O mestre levou-os a um ateliê, onde um artista esculpia a estátua de um notável da cidade, para ser colocada no centro da praça que tinha seu nome, como reconhecimento e homenagem.

Cinzel e martelo em mãos, lentamente o escultor ia tirando partes da grande pedra. Ainda na metade do trabalho. O mestre observou: “vejam como ele vai tirando pedacinhos milimetricamente. Vai subtraindo com absoluto cuidado, até que a peça ganhe forma, beleza e expressão dos traços de quem se queria representar. Sem que a grande pedra se submetesse à subtração, jamais a obra poderia ser completada.

Assim também somos nós, a cada dia, precisamos ter a coragem de subtrair, da mente e do coração, o que não nos permite ser quem de fato somos; de nos tornarmos uma obra de arte em permanente acabamento, para que imagem de Deus o sejamos.

Temos que subtrair sentimentos que não edifiquem; manias e caprichos que destroem relacionamentos e crescimentos humanos, afetivos, psicológicos, espirituais, intelectuais, e quanto mais se possa dizer.

Os bens que possuímos também não podem nos cegar. O desapego e o desprendimento de coisas materiais são operações de subtração que nos aproximam mais de Deus”.

Ao voltar, o jardineiro ainda cuidava do jardim, podando corretamente as flores, no tempo e na medida. O mestre parou e o apontou aos discípulos dizendo: “Estão vendo o jardineiro podando a roseira? Sem estes cortes, podas, subtrações de galhos não haverá rosas, e não havendo rosas, não haverá beleza para nosso olhar e odor exalado para nossos sentidos, e tão pouco para expressão de amor entre amados e amantes, pais e filhos e tantos outros que veem na troca de flores uma expressão de carinho, respeito, reconhecimento e afeto.”

Um discípulo indagou: “Mas que Deus tem a ver com isto?” Mal formulada a pergunta, o mestre lembrou a passagem do Evangelho sobre a videira (Jo 15, 1-17), com a qual Jesus Cristo Se identifica, e lhes falou das podas necessárias, como dolorosas subtrações para que a videira dê seus frutos: “assim é a nossa vida: também feita de subtrações, de perdas que se tornam ganhos. De podas doloridas que, se relidas a partir da fé, são certeza de um novo florescer e frutificar”.

Voltaram para casa, todos recolhidos em profundo silêncio. Talvez lembrando o som do martelo do escultor, o barulho da tesoura do jardineiro, as perdas que cada um de nós temos que passar para que se tornem ganhos. Talvez, ainda, da subtração da própria vida, como Jesus o fez: subtraídas Sua beleza e todas Suas forças na Cruz, expirou. Morrendo, Ressuscitou!

Terceira tarde: como falar de Deus a partir da multiplicação?
Aonde levaria os discípulos para lhes falar da multiplicação? Primeiramente, passaram numa pequena Igreja local, no momento em que terminava um retiro espiritual. O mestre se dirigindo ao coordenador do mesmo, perguntou como fora o lanche e o almoço daquele dia.

A resposta foi a mesma que muitas vezes vimos acontecer: estavam todos felizes com o dia de oração, e ninguém com fome, porque o almoço foi comunitário; todos colocaram em comum o que levaram. Todos comeram e ainda sobrou. Aliás, enquanto conversavam, rapidamente, uma mesa foi preparada com os alimentos que sobraram. Os discípulos e todos puderam fazer um lanche para seguir adiante.

O mestre caminhando para o retorno, enfatizou: “quando se multiplica o que temos, sempre sobra. Quando retemos o que temos sempre nos falta e sempre insatisfeitos ficamos. Assim fez Jesus naquele dia num lugar deserto, em que um menino tinha cinco pães e dois peixes e Ele fez o sinal da multiplicação, e todos comeram e ficaram saciados. Foi a mais bela lição da multiplicação que possuímos para que ninguém morra de fome, pois a Sua Palavra tem poder e é garantia de êxito: ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’.

Assim acontece em cada Eucaristia que celebramos: aprendemos que ninguém pode viver isoladamente, para si, pois assim empobreceria o seu viver e jamais saberia o gosto da saciedade e da felicidade. Somente sabe a beleza e o gosto da alegria quem sabe multiplicar os dons e talentos que o Senhor nos confiou, e nunca dizer que nada tem para oferecer; que nada pode fazer”.

O discípulo completou: “aprendamos que, com Deus, o que temos, ainda que pouco, com amor partilhado, é multiplicado e ainda haverá sobra, jamais desperdício. Que se recolha o que sobrou, para que ninguém fique privado do melhor que Deus tem à humanidade oferecer”.

Não puderam ir a mais lugar algum, a não ser o propósito de relerem na oração da noite, a passagem que o mestre se referira: Jo 6,1-21.

Quarta tarde: como falar de Deus a partir da divisão?
Naquela última tarde, o mestre levou-os a uma casa muito simples. Uma família sentada ao redor da mesa (as famílias precisam voltar a se encontrar ao redor da mesma para a refeição tanto quanto possível).

Mas a casa era tão pequena, como haveria de colocar todos lá dentro? Fizeram uma escolha entre eles de quem acompanharia o mestre e este descreveria os fatos lá vistos e sentidos.

Assim se fez. O discípulo lhes contou, ao retornarem, que, antes de comerem, o pai fez uma oração breve, agradecendo a Deus a comida servida, como bênção divina concedida. Pediu que Deus abençoasse aquele alimento, e que ele jamais faltasse na mesa de tantas outras famílias. Como a família era de poucos recursos econômicos, não tinha tanta comida na panela, como se previra, disse o discípulo:

“Chamou-me a atenção que a mãe serviu dividindo igualmente a quantidade de comida em cada prato. Todos comeram. Em seguida a mãe trouxe algumas frutas colhidas no quintal, dividiu entre todos, e disse: ‘Leve para os amigos de vocês estas frutas. Ficaremos felizes se levarem’”.

O mestre assim completou: “Quando aprendemos dividir o que temos nada nos falta. Quando a mesquinhez, ambição desmedida toma conta de nós, tornamo-nos insatisfeitos, consumistas, insaciáveis.

De fato somente o pão que partilhamos sacia nossa fome; somente a água que partilhamos sacia nossa sede; somente a roupa que partilhamos nos veste e nos protege do frio; somente a lágrima que secamos, faz secar as que em nós também vertem; somente os sonhos que ressuscitamos afastam de nós pesadelos; somente a poesia e o canto que exalta a beleza da vida divulgamos, devolve a poesia e encanto a viva que temos... somente...”

E assim, mestre e discípulos continuaram: “somente...”.
Quase chegando em sua casa, completou o mestre: “Assim aconteceu com Jesus Ressuscitado,  que no partir do Pão, na casa de Cléofas e o outro discípulo, os discípulos de Emaús (Lc 24,13-34), que somente Se tornou reconhecido no partir do pão.

Assim acontece com o Pão partilhado no Banquete da Eucaristia: reconhecemos a presença de Jesus, vivo e presente no Pão Consagrado e na Mesa: dividido, partilhado, comungado. Ele que pouco antes faz arder nosso coração quando a Palavra é proclamada”.

Quinta tarde:
Houve quinta tarde?
Mas não são quatro as operações fundamentais da matemática?
Então...
A quinta tarde acontece se quisermos.
A quinta tarde acontece se nos propusermos.

Que a quinta tarde sejam todas as tardes que virão depois, como tardes que não se repetem e que têm sua beleza própria. Em cada tarde, voltemos às quatro tardes e retomemos as operações da matemática em nossa vida.

Há tardes que nos levam a meditar sobre outras:
- Aquela tarde que nos falou o salmista – “Se à tarde nos vem o pranto visitar, a alegria pela manhã nos vem saudar” ( Sl 29, 6).

- Aquela tarde da Paixão – da morte do Senhor, que mudou a nossa vida. Aquela tarde em que o Amor foi crucificado, para que Ressuscitasse na madrugada da Ressurreição: porque o Amor é eterno, e com Amor eterno Deus nos amou.

- Aquela tarde em que Jesus caminhou com os discípulos de Emaús explicando-lhes as escrituras e, por fim, ouvindo dos mesmos – “Fica conosco Senhor”.

Rezar a partir da matemática é possível. Quando assim acontecer nos tornaremos mais humanos, fraternos, expressões vivas da misericórdia e ternuras divinas, e misericordiosos como o Pai, que não Se cansa de fazer todas as operações para que vida plena e feliz todos tenhamos, o seremos. 


PS: apropriado para a reflexão da passagem de Marcos (Mc 8,1-10; Jo 6,1-15)

O Senhor nos ensina a alegria da partilha (XVIIDTCB)

                                                             

O Senhor nos ensina a alegria da partilha

 “Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos
que estavam sentados, tanto quanto queriam.
E fez o mesmo com os peixes.”
(Jo 6,11)

A Liturgia do 17º Domingo do Tempo Comum (ano B) nos convida a refletir sobre a realidade da fome em sua múltipla expressão, e a ação de Deus em nosso favor para que esta seja saciada em plenitude, também nos exorta aos necessários compromissos de amor e partilha.

Aqui, não se trata apenas da fome do pão material, mas de outras tantas fomes: amor, liberdade, justiça, paz, esperança, fraternidade, solidariedade, alegria, ternura...

Na passagem da primeira Leitura (2 Rs 4, 42-44), com o Profeta Eliseu, aprendemos que a multiplicação de gestos de partilha e generosidade para com os irmãos revelam a presença de Deus, que vem ao nosso encontro para saciar a fome do mundo.

O Profeta Eliseu viveu um período muito conturbado, com a multiplicação das injustiças contra os pobres e as arbitrariedades contra os fracos, acompanhado da infidelidade a Deus na violação da Aliança.

A descrição contida na passagem nos revela que quando o homem é capaz de sair do seu egoísmo, com a disponibilidade para a partilha dos dons recebidos das mãos de Deus, torna-se gerador de vida em abundância. Ainda que pareça paradoxal, a partilha e a solidariedade não empobrecem, mas geram vida em abundância: quanto mais se partilha, mais se tem.

A ação de Deus se revela na ação dos pobres, que partilham com amor e generosidade, sem espetáculos. Deus quer precisar de nós, de nossa generosidade e bondade. Criando-nos sem a nossa participação, não quer nos salvar sem a mesma, como disse Santo Agostinho.

Na passagem da segunda Leitura (Ef 4,1-6), o Apóstolo Paulo exorta a comunidade a amadurecer na autenticidade de seu testemunho, abolindo toda prática fundada no egoísmo, orgulho, ciúmes, rivalidade, inveja, ódio, autossuficiência e preconceito, e assim, se esforçar em viver as exigências cristãs: a humildade, a mansidão e a paciência, que são os pilares da unidade.

A mensagem do Apóstolo é como que um convite a construir pontes, que criam proximidade, e não muros, que criam barreiras e divisões.

Na passagem do Evangelho (Jo 6,  1-5), com a multiplicação dos pães e peixes, Jesus nos convida a passar da escravidão à liberdade, da lógica do egoísmo à lógica do amor e da partilha.

Ainda podemos dizer que o capítulo 6 deste Evangelho é uma Catequese sobre Jesus, o Pão da Vida, que sacia a fome de vida plena de toda a humanidade em todos os tempos.

Alguns paralelos são notáveis:
- O Evangelista nos apresenta a ação libertadora de Jesus, de modo que Ele é o Novo Moisés, que tirará o povo da situação de miséria e escravidão em que se encontrava;

- O local em que Jesus realiza o sinal nos reporta ao Monte Sinai, onde Moisés recebeu os Dez Mandamentos;

- Com Moisés se deu a passagem da libertação da escravidão do Egito, e com Jesus temos a nova Páscoa, de modo especial a passagem da morte para a vida.

Outros elementos contidos na passagem, como também os gestos e palavras, revelam que a comunidade é constituída de gente simples e humilde, e com vocação para o serviço, que se expressa na partilha e solidariedade. Tão somente assim ela passa a viver a nova lógica proposta por Jesus.

É preciso substituir o egoísmo pelo amor e pela partilha. Jesus é a revelação do Deus que Se revestiu de nossa humanidade, e veio ao nosso encontro para revelar o amor Trinitário, fonte de vida plena e fraterna.

Com Jesus, vivendo a Sua Palavra, acolhida de modo especial na Eucaristia que celebramos, tornamo-nos partícipes de uma sociedade da saciedade, e não de uma sociedade com o pecado da desigualdade, da fome e da morte.

A caridade vivida em relação ao outro, sobretudo aos pobres, revela a autenticidade de nosso discipulado. Deste modo a comunidade tem que ser sempre um lugar deste aprendizado que nunca termina.

Sintamo-nos questionados e inquietos sobre os “pães e peixes” que temos para partilhar: amor, amizade, tempo, sorriso, dons, etc. Ainda que tenhamos pouco aos olhos humanos, quando partilhado com amor, torna-se multiplicado aos olhos de Deus.

Não há ninguém neste mundo que não tenha nada a partilhar ou algo a receber. E assim, todos nos enriquecemos, quando aprendemos e reaprendemos a alegria da partilha que o Senhor nos ensina, como expressão do amadurecido amor.

Somente deste modo é que o Reino de Deus acontece, quando não partilhamos do que sobra, mas até mesmo daquilo que possa nos faltar. Se assim realizado, não falta, multiplica, e todos somos saciados e alcançamos a verdadeira felicidade.

Renovemos a certeza de que quando colocamos nas mãos de Deus o que temos e o que somos, Ele faz o milagre acontecer!

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