“O sábado foi feito para o homem...”
A Liturgia do 9º Domingo do Tempo Comum (Ano B) nos convida a refletir sobre o Dia do Senhor (sábado para os judeus, domingo para os cristãos), que devemos guardar a fim de fazer memória da ação criadora e redentora de Deus com Seu Povo que somos.
A passagem da primeira Leitura (Dt 5,12-15) nos recorda o preceito do terceiro Mandamento, de guardar o sábado para santificá-lo, sugerindo que seja um dia que exprime a unidade do Povo que celebra a ação libertadora de Deus, sem qualquer tipo de desigualdades.
Temos a enunciação do Mandamento, uma explicação didática de como devemos praticá-lo e uma fundamentação teológica para essa mesma prática.
O referido Mandamento funciona como um símbolo dos deveres para com Javé (Dt 5,6.15) e para com o próximo (Dt 5,14.21).
Somos convidados a regressar aos fundamentos da celebração do Dia do Senhor, tomando a sério o valor do verbo “santificar”.
Santificar o Dia do Senhor implica em adorá-lo, acima de tudo e de todos, mas também implica em viver relações mais justas e fraternas com o próximo, para não incorrermos em nova escravidão.
Voltando aos fundamentos da celebração do Dia do Senhor, viveremos o sábado (ou Domingo), como memorial da libertação do Pecado na Páscoa de Cristo, que atualiza a obra libertadora de Deus da escravidão do Egito.
A celebração do Dia do Senhor tem uma grande dimensão social, sendo dia de descanso para todos, garantindo esse direito, sobretudo aos pobres que se veem assim protegidos pela Lei divina, como nos ensina o Catecismo da Igreja Católica:
“O agir de Deus é o modelo do agir humano. Se Deus ‘descansou’ no sétimo dia, o homem deve também ‘descansar’ e deixar que os outros, sobretudo os pobres, ‘tomem fôlego’. O sábado faz cessar os trabalhos quotidianos e concede uma folga. É um dia de protesto contra as servidões do trabalho e o culto do dinheiro” (n. 2172).
O Papa Bento XVI nos ajuda a compreender a importância do Domingo para os cristãos:
“Precisamos do pão da vida para enfrentar as fadigas e o cansaço da viagem. O Domingo, Dia do Senhor, é a ocasião propícia para haurir a força d'Ele, que é o Senhor da vida.
Por conseguinte, o preceito festivo não é um dever imposto pelo exterior, um peso sobre os nossos ombros. Ao contrário, participar na Celebração dominical, alimentar-se do Pão eucarístico e experimentar a comunhão dos irmãos e irmãs em Cristo é uma necessidade para o cristão, é uma alegria, e assim pode encontrar a energia necessária para o caminho que devemos percorrer todas as semanas.
Um caminho, aliás, não arbitrário: a via que Deus nos indica na sua Palavra vai na direção inscrita na própria essência do homem, a Palavra de Deus e a razão caminham juntas. Seguir a Palavra de Deus e caminhar com Cristo significa para o homem realizar-se a si mesmo; perdê-la equivale a perder-se a si próprio” (1)
Na passagem da segunda leitura (2 Cor 4,6-11), encontramos o modelo de evangelizador que devemos ser, a partir do exemplo de ardor apostólico de São Paulo.
Com ele, aprendemos que o evangelizador é portador de um tesouro precioso e a obra evangelizadora é obra do poder de Deus.
Deste modo, o Apóstolo, por sua vida, foi um prolongamento da vida de Cristo, apesar das fragilidades próprias, de modo que podemos afirmar: a mensagem evangélica não fica comprometida mesmo com nossas fragilidades.
A grande mensagem da passagem está nas frases de abertura e de conclusão, que servem de moldura a esta descrição autobiográfica de Paulo: ele não se anuncia a si mesmo (v. 5), mas anuncia “a glória de Deus, que se reflete no rosto de Cristo” (v. 6), e que Deus, autor da luz na criação do mundo, fez brilhar como luz no seu coração:
"O objetivo de Paulo é demonstrar que Cristo está vivo no seu ministério apostólico, mesmo a partir da fragilidade que se manifesta na forma como é perseguido e entregue à morte em nome de Cristo (v. 11).” (2)
Como vemos, o Apóstolo Paulo é um modelo de servidor do Evangelho para todos os que, na Igreja, se posicionam ao serviço humilde do Povo de Deus:
“Dele aprendemos que a grande característica do apostolado, mais que as ações pastorais inovadoras ou não, é a relação com Cristo, a ponto de trazer na própria vida as marcas dessa união, seja nas tribulações que se sofre por causa de Cristo e do Evangelho, seja porque se incarna na própria vida aquilo que se ensina”. (3)
Com Paulo, aprendemos que “...a vida do evangelizador deve conformar-se cada vez mais à vida de Cristo a ponto de se tornar um espelho de Cristo, um livro aberto do Evangelho, onde se pode ler os sinais da vida oferecida de Jesus. Só uma grande intimidade com Jesus Cristo, como a que teve Paulo, poderá dar-nos a possibilidade de sermos pessoas identificadas com o Evangelho que anunciamos”. (4)
A passagem do Evangelho (Mc 2,23–3,6) retoma a temática do terceiro preceito do Decálogo, nos episódios em que os discípulos colhem espigas para comer e um homem com uma mão atrofiada curado - ambos os episódios em dia de sábado.
O texto evangélico conclui a primeira seção do Evangelho de Marcos, que descreve a fase inicial do Ministério de Jesus (cf. Mc 1,14-3,6).
A mensagem central: quando se faz uma interpretação demasiado rigorista dos preceitos da Lei, esta deixa de cumprir a sua missão de estar ao serviço do homem em cada tempo.
Jesus nos convida, por isso, a posicionar-nos ao serviço dos necessitados, tendo em conta que o Dia do Senhor foi feito para o homem, não para fazer do homem um escravo.
Jesus Se confronta com os fariseus sobre o respeito pelo dia de sábado em dois episódios (Mc 2,23-28; 3,1-6), sendo que, neste último, pela primeira vez, os seus opositores se reuniam com os herodianos para encontrar uma maneira de condenar Jesus à morte (3,6), funcionando esta decisão como conclusão de todos os confrontos.
O Evangelista Marcos nos convida a centrar nas palavras de Jesus que ajudam a interpretar a sua liberdade diante da instituição do sábado judaico:
“O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. Por isso, o Filho do homem é também Senhor do sábado” (Mc 2,27-28); “Será permitido ao sábado fazer bem ou fazer mal, salvar a vida ou tirá-la?” (Mc 3,4):
“Diante do poder de Jesus e das necessidades humanas, as coisas sagradas não têm um valor próprio (nem o pão do santuário, no caso de David, nem o sábado, no caso dos discípulos de Jesus ou do homem com a mão atrofiada), mas existem para o bem da humanidade (os pães da proposição para alimentar David e os seus homens, o sábado para o homem e para Jesus); na interpretação de Jesus, é fundamental que, o que é sagrado, esteja ao serviço do homem...
Jesus escolheu fazer o bem e colocar-Se ao serviço das necessidades humanas, satisfazendo-as, mesmo se isso lhe acarreta a decisão do conluio das autoridades políticas e religiosas contra Ele, para O condenarem à morte” (5)
Não se trata, portanto, da interpretação libertina ou relativista do sábado, mas de fazer dele o dia da relação com Deus, que vem em auxílio de quem está em necessidade.
As interpretações rigoristas da Lei – como são as dos fariseus no nosso texto – cegam e não deixam ver as necessidades humanas que, na perspectiva de Jesus, são o verdadeiro critério para manter uma atitude livre diante da Lei, sendo assim o cristão prolonga a existência da vida de Cristo, e no Dia Maior, o Domingo, a Ele consagrado, não pode perder de vista os que foram os Seus prediletos, com gestos de amor, solidariedade e partilha.
Por fim, concluímos que todas as instituições, sejam elas religiosas ou civis, devem estar ao serviço da vida humana, para que possam realizar a missão para a qual nasceram, do contrário, perderão a razão de existir.