sábado, 20 de julho de 2024

Para os nossos amigos...

                                                                 

Para os nossos amigos...

Numa tarde de inverno, alguns amigos caminhavam à beira da praia e viram uma garrafa boiando, sendo trazida lentamente. Esperaram pacientemente, pois quem ousaria entrar no mar para pegar, aliás, nem bem sabiam se valeria todo o esforço. Amigos na praia em pleno inverno? Sim, pois os amigos sabem ver a beleza da praia e de tudo, em todas as estações.

Enfim, com a garrafa em mãos, viram, dentro dela, pequenos pergaminhos, enrolados com a delicadeza de quem se ocupou de coisas sagradas.

Olharam atentamente o seu conteúdo e, de pleno acordo, levaram para abrir em casa, pois o vento soprava como que cortando a alma. Afinal, a noite já se aproximava e era possível conter a curiosidade em saber o seu conteúdo.

Enquanto voltavam, até ensaiaram um ritual para a leitura: se de um por um, por quem começaria e se por sorteio, idade, ou aleatoriamente. Mas acharam por bem nutrir a curiosidade aguçada e propuseram um novo encontro.

Alguns dias depois, como fora combinado, se reencontraram, afinal, amigos criam e reinventam momentos e espaços pela simples alegria de estarem juntos.

Na hora de voltar, tudo no carro, mas não se deram conta de que faltava a referida garrafa. Na primeira parada, se atentaram, e não havia como não retornar para buscá-la, afinal, amigos de verdade sabem voltar, quando necessário, à procura do que fora esquecido ou, por um momento, aparentemente perdido.

E assim, fizeram. Tendo retornado, puseram-se novamente a caminho para o retorno.

No carro, contemplavam a garrafa e ao se despedirem, data e local devidamente marcados, afinal, amigos sabem o melhor dia, hora e local para o encontro, sem obrigatoriedade, sem imposição, pois na verdadeira amizade não podem ser encontrados resquícios de coerção ou imposição de caprichos e vontades, porque nela tem o sopro do Espírito, que nos cria e recria sempre para a fecunda maturidade e liberdade.

Enfim, o encontro aconteceu, e decidiram, a partir dos mais novos, a leitura, embora pudesse ser ao contrário, pois se tratava apenas de uma escolha, sem prejuízo do encontro, do propósito, pois, afinal, amigos verdadeiros não deixam pequeninas e insignificantes coisas se sobreporem ao essencial, que consiste no simples fato de estarem juntos.

Assim, começaram a leitura, e qual, porém, não foi surpresa, quando perceberam que a garrafa continha versículos bíblicos, cuidadosamente escolhidos na Sagrada Escritura, e que foram deleitosamente saboreados, acompanhados por uma música ao fundo, pois, afinal, amigos autênticos dão beleza e poesia ao encontro, como que num ritual celebrativo, em que se envolvem todos os sentidos, para que esta amizade faça a alma de todos transcender o tempo e o espaço, com a quase perda da noção do tempo:

“O amigo ama em todos os momentos; é um irmão na adversidade” (Pv 17,17);

“Melhor é a repreensão feita abertamente do que o amor oculto. Quem fere por amor mostra lealdade, mas o inimigo multiplica beijos” (Pv 27, 5-6);

“Assim como o ferro afia o ferro, o homem afia o seu companheiro” (Pv  27,17);

“Quem tem muitos amigos pode chegar à ruína, mas existe amigo mais apegado que um irmão” (Pv 18,24);

“Aconteceu que, terminando Davi de falar com Saul, Jônatas apegou-se a Davi. E Jônatas começou a amá-lo como a si mesmo. Saul o reteve naquele mesmo dia e não consentiu que voltasse para a casa de seu pai. Jônatas fez um pacto com Davi, porque o amava como a si mesmo” (1 Sm 1,18-1-3).

E claro, não poderia ser diferente, o último versículo, como se tivessem ensaiado, combinado, planejado, era do próprio Jesus, a quem chamam de Senhor:

“Ninguém tem maior amor do que Aquele que dá a Sua vida pelos Seus amigos. Vocês serão meus amigos, se fizerem o que Eu ordeno. Já não os chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor
faz. Em vez disso, Eu os tenho chamado amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai Eu tornei conhecido a vocês.” (Jo 15, 13-15).

As horas passaram e era preciso que se despedissem, e assim o fizeram, mas não sem antes combinarem e marcarem também dia e hora para celebrar no Altar do Senhor uma Missa em ação de graças por aquela amizade agora mais fortalecida, porque conduzida pela Palavra de Deus, que a todos conduz e ilumina, afinal as amizades que se deixam conduzir pela Palavra Divina e se nutrem do Pão da Eternidade; d’Aquele que Se Fez um de nós, exceto no pecado, para nos redimir e conosco estabelecer uma relação fecunda com germe de eternidade, não morrem jamais, eterniza-se na memória dos que a viveram e que  um dia contarão a outras gerações.

Mas...
Será que havia praia?
Havia garrafa?
Será que de fato aconteceu tudo que se contou?
Não importa.

Mas...
Há amizades assim?
Isto é o que verdadeiramente conta!
Rezemos pelos nossos amigos, aqueles que “guardamos no lado esquerdo do peito”, como canta o poeta.

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