quinta-feira, 29 de agosto de 2024

DOIS INIMIGOS SUTIS DA SANTIDADE (Capítulo II)

Capítulo II
DOIS INIMIGOS SUTIS DA SANTIDADE

Há duas falsificações de santidade que poderiam nos extraviar: o gnosticismo e o pelagianismo (heresias dos primeiros séculos do cristianismo).

Transparece um imanentismo antropocêntrico, disfarçado de verdade católica:

“seja o individualismo neopelagiano quer o desprezo neognóstico do corpo descaracterizam a confissão de fé em Cristo, único Salvador universal (Congregação para a doutrina da Fé)( conforme n. 35 e nota.

O GNOSTICISMO ATUAL:

Este supõe «uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos» (n.36).

“Ao desencarnar o mistério, em última análise preferem «um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo» (n. 37)

Trata-se de uma vaidosa superficialidade: muito movimento à superfície da mente, mas não se move nem se comove a profundidade do pensamento...” (n. 38).

Uma advertência: “Não estou a referir-me aos racionalistas inimigos da fé cristã. Isto pode acontecer dentro da Igreja, tanto nos leigos das paróquias como naqueles que ensinam filosofia ou teologia em centros de formação. Com efeito, também é típico dos gnósticos crer que eles, com as suas explicações, podem tornar perfeitamente compreensível toda a fé e todo o Evangelho. Absolutizam as suas teorias e obrigam os outros a submeter-se aos raciocínios que eles usam. Uma coisa é o uso saudável e humilde da razão para refletir sobre o ensinamento teológico e moral do Evangelho, outra é pretender reduzir o ensinamento de Jesus a uma lógica fria e dura que procura dominar tudo” (n.39).



“Com efeito, o gnosticismo, «por sua natureza, quer domesticar o mistério», tanto o Mistério de Deus e da Sua graça, como o mistério da vida dos outros” (n. 40).

Quem quer tudo claro e seguro, pretende dominar a transcendência de Deus” (n. 41).

Citando São Boaventura: “é necessário que se deixem todas as operações intelectivas e que o ápice mais sublime do amor seja transferido e transformado totalmente em Deus (...) Dado que, para se obter isto, nada pode a natureza e pouco pode a ciência, é preciso dar pouca importância à indagação, muita à unção espiritual; pouca à língua, e muita à alegria interior; pouca à palavra e aos livros e toda ao dom de Deus, isto é, ao Espírito Santo; pouca ou nenhuma à criatura e toda ao Criador: ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”

“Se nos deixarmos guiar mais pelo Espírito do que pelos nossos raciocínios, podemos e devemos procurar o Senhor em cada vida humana. Isto faz parte do mistério que as mentalidades gnósticas acabam por rejeitar, porque não o podem controlar” (n. 42).

Na realidade, porém, aquilo que julgamos saber sempre deveria ser uma motivação para responder melhor ao amor de Deus, porque «se aprende para viver: teologia e santidade são um binómio inseparável» (n. 45).


Citando São Francisco de Assis: “...ao ver que alguns dos seus discípulos ensinavam a doutrina, quis evitar a tentação do gnosticismo. Então escreveu assim a Santo António de Lisboa: ‘Apraz-me que interpreteis aos demais frades a sagrada teologia, contanto que este estudo não apague neles o espírito da santa oração e devoção’” (n.46).


Na relação entre sabedoria e misericórdia, cita São Boaventura: “advertia que a verdadeira sabedoria cristã não se deve desligar da misericórdia para com o próximo: ‘A maior sabedoria que pode existir consiste em dispensar frutuosamente o que se possui e que lhe foi dado precisamente para o distribuir (...). Por isso, como a misericórdia é amiga da sabedoria, assim a avareza é sua inimiga’. Há atividades, como as obras de misericórdia e de piedade, que, unindo-se à contemplação, não a impedem, antes favorecem-na’”.  (n. 46).

O PELAGIANISMO ATUAL:

Com o passar do tempo, muitos começaram a reconhecer que não é o conhecimento que nos torna melhores ou santos, mas a vida que levamos (n.47).

Não há lugar para a atuação da graça de Deus: “...o poder que os gnósticos atribuíam à inteligência, alguns começaram a atribuí-lo à vontade humana, ao esforço pessoal. Surgiram, assim, os pelagianos e os semipelagianos. Já não era a inteligência que ocupava o lugar do mistério e da graça, mas a vontade. Esquecia-se que ‘isto não depende daquele que quer nem daquele que se esforça por alcançá-lo, mas de Deus que é misericordioso’ (Rm 9, 16) e que Ele ‘nos amou primeiro’ (1 Jo 4, 19)” (n. 48).

“Quem se conforma a esta mentalidade pelagiana ou semipelagiana, embora fale da graça de Deus com discursos edulcorados, “no fundo, só confia nas suas próprias forças e sente-se superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico” (n. 49)

Ensinava Santo Agostinho: Deus convida-te a fazer o que podes e “a pedir o que não podes’; ou então a dizer humildemente ao Senhor: “dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que quiserdes”(n.49).

“A graça, precisamente porque supõe a nossa natureza, não nos faz improvisamente super-homens. Pretendê-lo seria confiar demasiado em nós próprios. Neste caso, por trás da ortodoxia, as nossas atitudes podem não corresponder ao que afirmamos sobre a necessidade da graça e, na prática, acabamos por confiar pouco nela...”  (n. 50).

Um ensinamento da Igreja dos Padres da Igreja, frequentemente esquecido – “A Igreja ensinou repetidamente que não somos justificados pelas nossas obras ou pelos nossos esforços, mas pela graça do Senhor que toma a iniciativa” (n. 52).

São João Crisóstomo: Deus derrama em nós a própria fonte de todos os dons, “antes de termos entrado no combate” (n.52).


São Basílio Magno: o fiel se gloria apenas em Deus, porque “reconhece estar privado da verdadeira justiça e que é justificado somente por meio da fé em Cristo” (n.52).

O II Sínodo de Orange ensinou, com firme autoridade, que nenhum ser humano pode exigir, merecer ou comprar o dom da graça divina, e que toda a cooperação com ela é dom prévio da mesma graça: “até o desejo de ser puro se realiza em nós por infusão do Espírito Santo e com sua ação sobre nós” (n. 53).


O Concílio de Trento, mesmo reafirmou tal ensinamento dogmático: «Afirma-se que somos justificados gratuitamente, porque nada do que precede a justificação, quer a fé, quer as obras, merece a própria graça da justificação; porque, se é graça, então não é pelas obras, caso contrário, a graça já não seria graça (Rm 11, 6)» (n.53)

O Catecismo da Igreja Católica: o dom da graça «ultrapassa as capacidades da inteligência e as forças da vontade humana» e que, «em relação a Deus, não há, da parte do homem, mérito no sentido dum direito estrito” (n. 54)

Santa Teresa de Lisieux: os santos evitam de pôr a confiança nas suas ações: “Ao anoitecer desta vida, aparecerei diante de Vós com as mãos vazias, pois não Vos peço, Senhor, que conteis as minhas obras. Todas as nossas justiças têm manchas aos Vossos olhos” (n.54).

A caridade torna possível o crescimento na vida da graça, porque, “se não tiver amor, nada sou” (1 Cor 13, 2).  (n. 56).

Os novos pelagianos: “Ainda há cristãos que insistem em seguir outro caminho: o da justificação pelas suas próprias forças, o da adoração da vontade humana e da própria capacidade, que se traduz numa autocomplacência egocêntrica e elitista, desprovida do verdadeiro amor. Manifesta-se em muitas atitudes aparentemente diferentes entre si: a obsessão pela lei, o fascínio de exibir conquistas sociais e políticas, a ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, a vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, a atração pelas dinâmicas de autoajuda e realização autorreferencial. É nisto que alguns cristãos gastam as suas energias e o seu tempo, em vez de se deixarem guiar pelo Espírito no caminho do amor, apaixonarem-se por comunicar a beleza e a alegria do Evangelho e procurarem os afastados nessas imensas multidões sedentas de Cristo”. (n. 57).

“Muitas vezes, contra o impulso do Espírito, a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa propriedade de poucos. Verifica-se isto quando alguns grupos cristãos dão excessiva importância à observância de certas normas próprias, costumes ou estilos. Assim se habituam a reduzir e deter o Evangelho, despojando-o da sua simplicidade cativante e do seu sabor. É talvez uma forma sutil de pelagianismo, porque parece submeter a vida da graça a certas estruturas humanas. Isto diz respeito a grupos, movimentos e comunidades, e explica por que tantas vezes começam com uma vida intensa no Espírito, mas depressa acabam fossilizados... ou corruptos” (n. 58).

“Sem nos darmos conta, pelo fato de pensar que tudo depende do esforço humano canalizado através de normas e estruturas eclesiais, complicamos o Evangelho e tornamo-nos escravos dum esquema que deixa poucas aberturas para que a graça atue” (n. 59).

Citando São Tomás de Aquino: “lembrava-nos que se deve exigir, com moderação, os preceitos acrescentados ao Evangelho pela Igreja, para não tornar a vida pesada aos fiéis, (porque assim) se transformaria a nossa religião numa escravidão” (n. 59).

O resumo da Lei: o amor a Deus e ao próximo (n. 60, 61): a fé agindo pela caridade (Gl 5.6).

UMA SÚPLICA E UM QUESTIONAMENTO:

“Que o Senhor liberte a Igreja das novas formas de gnosticismo e pelagianismo que a complicam e detêm no seu caminho para a santidade! Estes desvios manifestam-se de formas diferentes, segundo o temperamento e as caraterísticas próprias. Por isso, exorto cada um a questionar-se e a discernir diante de Deus a maneira como possam estar a manifestar-se na sua vida” (n. 62).

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