Como promover a cultura da misericórdia, num mundo marcado por atentados e tantos outros fatos que revelam a face sombria da violência, do desamor, do desrespeito à beleza e sacralidade da vida e de toda a criação, e de nossa casa comum?
Qual é a participação da Igreja nesta promoção? Em que podemos colaborar, como Igreja que somos, ao lado de tantas outras Igrejas que professam sua fé em Jesus Cristo?
O Cardeal Walter Kasper nos ilumina na busca destas respostas, como veremos nesta reflexão:
“A Igreja não pode circunscrever a sua mensagem da misericórdia ao âmbito individual-pessoal e eclesial; não pode, por assim dizer, confirmar-se à sacristia. Deve ser fermento, sal e luz do mundo (cf Mt 5,13s; 13,33) e comprometer-se a favor da vida do mundo.
Mas não tem nenhuma competência específica nas questões técnicas da política econômica e social, pois os assuntos relativos à ordem econômica e social têm uma autonomia legítima e objetivamente fundada; nelas não são os teólogos que tem a palavra, mas, sobretudo os leigos competentes”.
Disto decorre a necessidade do desenvolvimento e conhecimento da DSI – Doutrina Social da Igreja –, que tem como ponto de partida e fundamento a imagem cristã do ser humano e sua incondicional dignidade de toda e qualquer pessoa:
“Não é a sociedade, mas o Criador quem dá ao ser humano essa dignidade, tornando-a indisponível e inalienável. Porque é dada a todos os seres humanos igualmente, influi a solidariedade entre todos os homens. Da dignidade qualquer pessoa resulta o direito a uma vida humanamente digna que parta da autodeterminação e se baseie na solidariedade com todos os outros homens.
Assim, cabe afirmar que a liberdade de qualquer indivíduo e a liberdade comum de todos eles constituem os princípios da construção da doutrina social católica. O recurso mais importante não é a posse de terras ou de capital, mas sim os ser humano com a sua capacidade cognoscitiva, a sua iniciativa e o seu trabalho criador”
Não se trata da Igreja querer retirar do Evangelho um programa social concreto ou uma espécie de política cristã, haja vista que a DSI não é um sistema abstrato, acabado, dedutivo:
“Antes tenta refletir sobre as situações sociais humanas de mudança à luz dos fundamentos antropológicos cristãs. Deste modo, baseando-se na sua concepção do ser humano, tenta oferecer respostas aos desafios da situação moderna, nascida da industrialização”.
Sua formulação, desde Leão XIII, com a “Rerum Novarum”, em 1891, parte da dignidade de toda a pessoa humana, assim como da sua pertença à sociedade, sublinhando a exigência de justiça com a ajuda dos princípios complementares da subsidiariedade (cada unidade menor, em primeiro lugar, a família e depois as outras unidades reconhecidas, como o município ou as associações, formais, livres, devem fazer e deve-lhes também ser permitido fazer tudo aquilo que sejam capazes de realizar com os seus próprios meios) e da solidariedade (atitude interpessoal que começa no âmbito que em cada caso está mais próximo: a família, a vizinhança, o círculo de amigos e conhecidos... a solidariedade deve impregnar a comunidade no seu tudo, propiciando uma ordem justa, para o conjunto da sociedade).
Ainda é preciso dizer que as Encíclicas Sociais dos Papas, sem cessar, alertam o fato de que são necessários os olhos do amor e da misericórdia para compreensão e transformação de novas situações de necessidade e seus novos desafios sociais, pois somente o amor pode proporcionar o empurrão necessário para a abordagem com energia alcançando a superação de situações de necessidades identificadas.
Na Encíclica “Caritas in Veritate”, o Papa Bento XVI nos falou do amor como o caminho principal e o princípio fundamental da DSI:
“Para ele, o amor é o princípio determinante não só nas microrrelações como a amizade, a família e os pequenos grupos, mas também nas macrorrelações, quer dizer, em contextos sociais, econômicos e políticos.”
É possível e necessário pensarmos e darmos passos significativos na construção de uma cultura de misericórdia, que o Papa São Paulo VI chamava de uma “civilização do amor”, que vai além de uma cultura da justiça. Tão somente assim, como Igreja, os diversos grupos eclesiais poderão, de alguma forma, contribuir para a humanização da sociedade e do sistema, e então, o Estado terá alma, e vidas não serão barbaramente ceifadas.
Não há formulações prontas, caminhos traçados e um catálogo de respostas simplistas. O desafio é para todas as pessoas de boa vontade que acreditam na dignidade e sacralidade da vida, desde a concepção ao seu declínio natural; que amam e preservam o planeta, que o Papa Francisco em sua Encíclica “Laudato Si” chamou de “nossa casa comum”.
Há luzes acesas para iluminar o caminho para construirmos uma cultura da misericórdia, portanto, não estamos condenados a falta de esperança, sobretudo porque temos fé, e sabemos em quem depositamos nossa confiança e cremos em Seu sublime ensinamento sintetizado no amor a Deus e ao próximo, inseparavelmente.
PS: Citações extraídas do livro “A misericórdia” – Cardeal Walter Kasper – Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã - Edições Loyola
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