segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Mensagem para o 48º Dia Mundial da Paz (Papa Francisco)



Mensagem para o 48º Dia Mundial da Paz

“Já não escravos, mas irmãos"

Na Mensagem para o XLVIII Dia Mundial da Paz, celebrado em 1º de janeiro de 2015, o Papa Francisco propõe uma reflexão sobre os conflitos e guerras ideológicas entre as religiões e países, bem como chama a atenção para a necessidade do diálogo e da paz.

Também alerta para as diferentes formas de escravidão existentes no mundo, que precisam ser superadas, pois não há lugar para a escravidão aos olhos de Deus e a revelação bíblica - ‘já não escravos, mas irmãos’, que é exatamente o versículo inspirador de sua Mensagem, da Carta de Paulo a Filemon.

Na fundamentação bíblica, o Papa faz menção a outras passagens (Gn 1,27-28; Gn 4, 1-16; Gn 9,18-27),  em que nos fala de uma nova realidade que devemos estabelecer entre os povos, para que a vida e a dignidade humana sejam preservadas, contra toda forma de guerra, conflito, violência:

“... a conversão a Cristo, o início de uma vida de discipulado em Cristo constitui um novo nascimento (cf. 2 Cor 5, 17; 1 Ped 1, 3), que regenera a fraternidade como vínculo fundante da vida familiar e alicerce da vida social”.

Após a fundamentação, ele afirma que o próprio Jesus disse aos Seus discípulos:

«Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15, 15), e é esta relação que devemos estabelecer entre nós.

Apresenta as múltiplas faces da escravatura, ontem e hoje:

- milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura;

- trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da indústria manufatureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do trabalho não está conforme as normas e padrões mínimos internacionais, como – ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador;

- as condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajeto dramático, padecem a fome, são privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados física e sexualmente;

- tantos que chegando ao destino, depois de uma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas;

- tantos que em diversas circunstâncias sociais, políticas e econômicas impelem a passar à clandestinidade, e naqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, caracterizando no trabalho escravo;

-pessoas obrigadas a se prostituírem, entre as quais se contam muitos menores;

- mulheres forçadas a casar-se, umas são vendidas para casamento e outras são deixadas em sucessão a um familiar, por morte do marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio consentimento;

- menores e adultos que são objeto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, recrutados como soldados, para servirem de pedintes, para atividades ilegais, como a produção ou venda de drogas, ou formas disfarçadas de adoção internacional;

- aqueles que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objetivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais, e muitos deles desaparecem, alguns são vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos.

Em seguida, apresenta algumas causas profundas da escravatura, quando se trata o outro como um objeto consequência da rejeição da humanidade do outro.

A primeira causa acenada por ele é a combinação da pobreza, com o subdesenvolvimento e exclusão, resultando na falta de acesso à educação, falta de oportunidades de emprego:

– “Não raro, as vítimas de tráfico e servidão são pessoas que procuravam uma forma de sair da condição de pobreza extrema e, dando crédito a falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das redes criminosas que gerem o tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo”

A segunda é a corrupção daqueles que, para enriquecer, estão dispostos a tudo, isto se deve – “Quando a pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta inversão de valores”.

Apresenta outras causas da escravidão, como os conflitos armados, as violências, a criminalidade e o terrorismo.

Mas também exorta a todas as pessoas de boa vontade para um compromisso comum, para que se vença a escravatura; menciona as congregações religiosas femininas, que realizam, silenciosamente, valiosos trabalhos em favor das vítimas da escravatura, numa tríplice ação: o socorro às vítimas, a sua reabilitação sob o perfil psicológico e formativo, e a sua reintegração na sociedade de destino ou de origem.

Outros atores são fundamentais neste trabalho, e o Papa exorta para que não meçam esforços nesta missão de inverter esta lógica de escravidão que atenta à vida e à dignidade humana:

o papel dos Estados, que deveriam vigiar para que as respectivas legislações nacionais sobre as migrações, o trabalho, as adoções, a transferência das empresas e a comercialização de produtos feitos por meio da exploração do trabalho sejam efetivamente respeitadoras da dignidade da pessoa;

as organizações intergovernamentais são chamadas, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, a implementar iniciativas coordenadas para combater as redes transnacionais do crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o tráfico ilegal dos migrantes;

as empresas têm o dever não só de garantir aos seus empregados condições de trabalho dignas e salários adequados, mas também de vigiar para que não tenham lugar, nas cadeias de distribuição, formas de servidão ou tráfico de pessoas humanas;

a responsabilidade social do consumidor, porque cada pessoa deveria ter consciência de que «comprar é sempre um ato moral, para além de econômico»;

 - as organizações da sociedade civil  que têm o dever de sensibilizar e estimular as consciências sobre os passos necessários para o combate e erradicação da cultura da servidão.

Para que a paz se torne uma realidade, convoca os cristãos para que sejam “artífices da globalização da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos”. É preciso globalizar a fraternidade, com um não à escravidão e à indiferença.

Um ícone desta atitude, o Papa cita Josefina Bakhita, “a Santa originária da região do Darfur, no Sudão. Raptada por traficantes de escravos e vendida a patrões desalmados desde a idade de nove anos, haveria de tornar-se, depois de dolorosas vicissitudes, «uma livre filha de Deus» mediante a fé vivida na consagração religiosa e no serviço aos outros, especialmente aos pequenos e fracos.

Esta Santa, que viveu a cavalo entre os séculos XIX e XX, é também hoje testemunha exemplar de esperança para as numerosas vítimas da escravatura e pode apoiar os esforços de quantos se dedicam à luta contra esta «ferida no corpo da humanidade contemporânea, uma chaga na carne de Cristo».

Todos precisamos reconhecer que estamos perante um fenômeno mundial que excede as competências de uma única comunidade ou nação e, que para vencê-lo, é preciso uma mobilização de dimensões comparáveis às do próprio fenômeno, multiplicando gestos pequenos e grandes de solidariedade e fraternidade:

– “lanço um veemente apelo a todos os homens e mulheres de boa vontade e a quantos, mesmo nos mais altos níveis das instituições, são testemunhas, de perto ou de longe, do flagelo da escravidão contemporânea, para que não se tornem cúmplices deste mal, não afastem o olhar à vista dos sofrimentos de seus irmãos e irmãs em humanidade, privados de liberdade e dignidade, mas tenham a coragem de tocar a carne sofredora de Cristo, o Qual Se torna visível através dos rostos inumeráveis daqueles a quem Ele mesmo chama os «meus irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45)”.

São indispensáveis, porque questionadoras, as palavras finais de sua Mensagem:

“Sabemos que Deus perguntará a cada um de nós: Que fizeste do teu irmão? (cf. Gen 4, 9-10). A globalização da indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos, requer de todos nós que nos façamos artífices de uma globalização da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos”.

PS: O texto na íntegra, o leitor poderá conferir acessando:

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