domingo, 30 de março de 2025

Deus não quer a morte do pecador (IVDTQC)

                                                      

Deus não quer a morte do pecador

O escritor, poeta e filósofo assim escreveu sobre a parábola do filho pródigo, como é conhecida, ou a “a Parábola do pai misericordioso”, como também podemos chamá-la:

O pai “ama tanto o seu filho que o apanha com um anzol invisível e com uma linha de pesca invisível, que é suficientemente grande para deixá-lo vaguear até aos confins do mundo e, no entanto, fazê-lo regressar com um só puxão de linha”. (1)

Na figura do pai, contemplamos a face e o agir de Deus, que nos ama com o amor infinito, sempre pronto a nos acolher de volta, recriados e renovados por Sua misericórdia, que nos envolve em Sua indizível ternura e desejo de que sejamos felizes; felicidade que somente podemos encontrar, se d’Ele não nos distanciarmos.

Rezemos por quantos estejam afastados do convívio amoroso de Deus, distantes também de nossas comunidades, da Mesa do Pão da Palavra e da Eucaristia.

Repensemos nossa pastoral, para que seja mais acolhedora e misericordiosa, assim como nos ensinou Jesus com as três Parábolas que encontramos, sobretudo, no capítulo 15 do Evangelho de São Lucas.

Seja a Quaresma tempo de reconciliação com Deus e com nosso próximo. Deus está sempre pronto a nos acolher e nos perdoar, oferecendo novas possibilidades, um novo caminho:

“Deus não fecha os olhos com complacente paternalismo, mas abre novo crédito de confiança a nossas responsabilidades e dá a garantia de vencer o mal com o bem. Renova assim no pecador a alegria de viver”. (2)

Participemos da festa dos reconciliados, que experimentam a força e a vida nova que nasce de cada gesto de amor, acolhida e perdão.

Oremos:

“Ó Deus, que pelos exercícios da Quaresma já nos dais na terra participar dos bens do céu, guiai-nos de tal modo nesta vida, que possamos chegar à luz em que habitais. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.”


(1) Lecionário Comentado – Editora Paulus – Volume Quaresma Páscoa – 2011 – p. 132
(2) Missal Cotidiano – Editora Paulus – p. 222

O Senhor iluminou os nossos olhos (IVDTQ)

O Senhor iluminou os nossos olhos

No 4º Domingo da Quaresma, a Igreja nos oferece, na Liturgia das Horas,  um texto escrito pelo Bispo Santo Agostinho (séc V),  extraído “Dos Tratados sobre o Evangelho de São João” sobre a passagem em que Jesus realiza o sinal da cura do cego de nascença (Jo 9,1-41).

“Diz o Senhor: Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, não andará nas trevas, mas terá a luz da vida (Jo 8,12).

Estas breves palavras contêm um preceito e uma promessa. Façamos o que o Senhor mandou, para esperarmos sem receio receber o que prometeu, e não nos vir Ele a dizer no dia do Juízo: 'Fizeste o que mandei para esperares agora alcançar o que prometi?’ Responder-te-á: ‘Disse quem e seguisses’. Pediste um conselho de vida. De que vida, senão daquela sobre a qual foi dito: Em Vós está a fonte da vida?(Sl 35,10).

Por conseguinte, façamos agora o que nos manda, sigamos o Senhor, e quebremos os grilhões que nos impedem de segui-Lo. Mas quem é capaz de romper tais amarras se não for ajudado por Aquele de quem se disse: Quebrastes os meus grilhões (Sl 115,7). E também noutro salmo: É o Senhor quem liberta os cativos, o Senhor faz erguer-se o caído (Sl 145,7-8).

Somente os que assim são libertados e erguidos poderão seguir aquela luz que proclama: Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, não andará nas trevas.

Realmente o Senhor faz os cegos verem. Os nossos olhos, irmãos, são agora iluminados pelo colírio da fé. Para restituir a vista ao cego de nascença, o Senhor começou por ungir-lhe os olhos com Sua saliva misturada com terra.

Cegos também nós nascemos de Adão, e precisamos de ser iluminados pelo Senhor. Ele misturou Sua saliva com a terra: E a Palavra Se fez Carne e habitou entre nós (Jo 1,14).

Misturou Sua saliva com a terra, como fora predito: A verdade brotou da terra (cf. Sl 84,12). E Ele próprio disse: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6).

A verdade nos saciará quando O virmos face a face, porque também isso nos foi prometido. Pois quem ousaria esperar, se Deus não tivesse prometido ou dado?

Veremos face a face, como diz o Apóstolo: Agora, conheço apenas de modo imperfeito; agora, nós vemos num espelho, confusamente, mas, então, veremos face a face (1Cor 13,12).

E o Apóstolo João diz numa de suas Cartas: Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus Se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é (1Jo 3,2). Eis a grande promessa!

Se O amas, segue-O! ‘Eu O amo, dizes tu, mas por onde O seguirei?’ Se o Senhor te houvesse dito: ‘Eu sou a Verdade e a Vida’, tu que desejas a verdade e aspiras à vida, certamente procurarias o caminho para alcançá-la e dirias a ti mesmo: ‘Grande coisa é a verdade, grande coisa é a vida! Ah, se fosse possível à minha alma encontrar o caminho para lá chegar!’

Queres conhecer o caminho? Ouve o que o Senhor diz em primeiro lugar: Eu sou o Caminho. Antes de dizer aonde deves ir, mostrou por onde deves seguir. Eu sou, diz Ele, o Caminho. O Caminho para onde? A Verdade e a Vida.

Disse primeiro por onde deves seguir e logo depois indicou para onde deves ir. 'Eu sou o Caminho, Eu sou a Verdade, Eu sou a Vida'. Permanecendo junto do Pai, é Verdade e Vida; revestindo-Se de nossa carne, tornou-Se o Caminho.

Não te é dito: ‘Esforça-te por encontrar o caminho, para que possas chegar à verdade e à vida’. Decerto não é isso que te dizem. Levanta-te, preguiçoso! O próprio Caminho veio ao teu encontro e te despertou do sono em que dormias, se é que chegou a despertar-te; levanta-te e anda!

Talvez tentes andar e não consigas, porque te doem os pés. Por que estão doendo? Não será pela dureza dos caminhos que a avareza te levou a percorrer?

Mas o Verbo de Deus curou também os coxos. ‘Eu tenho os pés sadios, respondes, mas não vejo o Caminho’. Lembra-te que Ele também deu a vista aos cegos”.

Santo Agostinho nos apresenta o Cristo, que é o caminho para a luz e a verdade para a vida, e enviado por Deus pode nos curar de toda enfermidade, de toda cegueira.

Assim como o cego de nascença, também sejamos curados de nossa cegueira interior, a mais empobrecedora de todas, a cegueira espiritual, tenhamos o coração iluminado para ver como Deus vê, pois Ele vê o coração e não as aparências (1Sm 16,7).

Curados de nossa cegueira para vivermos como filhos da luz, na prática da bondade, amor e verdade, como o Apóstolo nos exorta na Epístola (Ef 5, 8-14).

Curados, iluminados por Deus, e iluminadores do mundo, com Sua Divina luz, sejamos. Amém! 

Dai-nos, Senhor, o colírio da fé!

                                                    

Dai-nos, Senhor, o colírio da fé!
Sem a luz da fé, sem o colírio da fé
Sou a criatura mais míope que se conheça.
Nem caminhos, nem montes, nem vales...
Mal distingo os bens dos males!

Sem a luz da fé, sem o colírio da fé
Fecho-me, enterro-me, sucumbo-me
Cadavericamente na sepultura fico,
Nem me lanço apenas desmaio, caio...

Sem a luz da fé, sem o colírio da fé
Minha cegueira não é apenas de nascença,
Acompanha-me sordidamente no frio da eternidade,
Sem vã esperança, vida vazia, mediocridade...

Sem a luz da fé, sem o colírio da fé
Mergulho no abismo da triste escuridão.
Sem forças, definho-me, rendo-me,
Numa história insana, doentia solidão.

Com a luz da fé, com o colírio da fé
Com o Espírito mudo a tônica, a vida tem novo tom,
Porque com ela tudo se renova, recria, multiplica...
Ó quão imensuráveis maravilhas com tão excelso dom!

Com a luz da fé, com o colírio da fé
Vejo tudo possível, porque vejo diferente,
A esperança se renova e se materializa,
Novos sonhos, ilumina-se a minha mente.

Com a luz da fé, com o colírio da fé
Nossos cansaços, em Deus o descanso,
Pedras do caminho são removidas,
Em Seu coração tão terno e manso.

Com a luz da fé, com o colírio da fé
Caverna escura de nossa existência é iluminada,
Toda secura da alma, pela água cristalina saciada,
Toda lágrima vertida, pela Mão Divina enxugada.

Viver a vida com toda intensidade:
Sem a luz da fé, sem o colírio da fé;
Ou com a luz da fé, com o colírio da fé...
Indubitavelmente com ela, de Deus, um dom!

PS: apropriado para a passagem do Evangelho de Marcos (Mc 10,46-52; Lc 18,35-43).

Movidos pelo amor

                                                            

Movidos pelo amor

O monge São João Clímaco (séc. VI) nos apresenta, no oitavo degrau da Escada Santa, um fato presenciado que muito nos ilumina sobre o verdadeiro amor, que se estende aos inimigos:

“Um dia vi três monges humilhados de maneira semelhante no mesmo momento. O primeiro ficou imensamente ofendido, perturbou-se, mas guardou o silêncio. O segundo alegrou-se por si mesmo, mas entristeceu-se por quem o insultava. O terceiro só pensou no dano causado ao seu próximo e chorou com extrema compaixão. Um era movido pelo temor, o outro pela esperança da recompensa, o terceiro pelo amor.”

Também nós podemos ser humilhados ou constrangidos, por diversas situações ou por alguém, e podemos ter semelhantes atitudes.

Roguemos a Deus que nos dê a mansidão necessária, para que alcancemos o grau elevado da terceira atitude, a fim de que sejamos movidos pelo amor, choremos por extrema compaixão de quem nos tenha ofendido.

Ainda que nos seja difícil, é a melhor atitude que devemos ter, para que não nos seja roubada a graça e a alegria de perdoar e ser perdoado, inseparavelmente.

De nossos olhos, sejam vertidas lágrimas de compaixão, que  purifiquem nosso olhar e nosso coração, e possamos ver  a presença de Deus no coração de nosso próximo, ainda que nos tenha ofendido. Amém.


PS: citado em Fontes: Os Místicos Cristãos dos primeiros séculos – textos e comentários – Edições Subíaco – p.224
Memória celebrada no dia 30 de março.

Fortalecidos pela oração

                                                   

Fortalecidos pela oração

“Seja todo o fio da oração singelo, sem multiplicação e elegância de muitas palavras, pois somente com uma se reconciliaram com Deus o publicano do Evangelho e o filho pródigo.”

Na Quaresma, a Igreja nos convida à prática de três exercícios: oração, jejum e esmola.

Acolhamos a reflexão de São João Clímaco, que muito pode nos ajudar no aprofundamento da oração agradável a Deus:

“A oração segundo sua condição e natureza, é a união do homem com Deus; mas segundo seus efeitos e operações, oração é vigia do mundo, reconciliação com Deus, mãe e filha das lágrimas, perdão dos pecados, ponte para atravessar as tentações, muro contra as tribulações, vitória nas batalhas, obra dos Anjos, sustento das substâncias incorpóreas, deleite da alegria vindoura, obra que não se acaba, fonte de virtudes, procuradora das graças, aproveitamento invisível, sustentáculo do espírito, luz do entendimento, coação da desesperação, argumento da fé, desterro da tristeza dos monges, tesouro dos solitários, diminuição da ira, modelo de aproveitamento, indício da medida das virtudes, manifestação de nosso estado, revelação das coisas vindouras e significação da clemência divina aos que perseveram chorando nela.

Tudo isto se diz ser a oração, porque ajuda ao homem em todas as coisas, pedindo e alcançando a caridade, a devoção e a graça, as quais nos administram todas as coisas.

A oração, para aqueles que oram corretamente, é um espiritual juízo e tribunal de Deus, que antecede o tribunal do juízo vindouro; porque ali o homem se conhece, se acusa e se julga para dispensar o juízo e a condenação de Deus, conforme disse o Apóstolo.

Levantemo-nos, pois, irmãos, ouçamos esta grande auxiliadora de todas as virtudes, que com alta voz clama e diz: ‘Vinde a mim todos que estais cansados e sobrecarregados, que Eu  vos animarei’. Tomai sobre vós o meu jugo, e encontrareis descanso para vossas almas, e remédio para vossas chagas, porque meu jugo é suave, e cura ao homem de grandes chagas.

Aqueles dentre nós que chegamos a falar e participar diante de nosso Deus, não façamos isto despreparados; porque fitando-nos Aquele longânime e misericordioso Senhor, sem armas e sem vestes dignas de Seu real acatamento, não mande Seus criados e ministros que nos desterrem de Sua presença atados de mãos e pés, e nos deem em face com a negligência e interrupção de nossas orações.

Quando fores apresentar diante da face do Senhor, procura levar a veste de tua alma costurada com o fio daquela virtude que se chama esquecimento das injúrias; porque de outra maneira nada ganharás com a oração.

Seja todo o fio da oração singelo, sem multiplicação e elegância de muitas palavras, pois somente com uma se reconciliaram com Deus o publicano do Evangelho e o filho pródigo.

O Estado dos que oram é um; porém nele existe muita variedade e diferença de Orações. Porque existem alguns que comparecem diante de Deus como diante de um amigo e Senhor familiar, oferecendo-lhe Orações e louvores, não tanto pela sua própria salvação como pela dos outros, como fazia Moisés.

Outros, por sua vez, pedem-lhe maiores riquezas, maior glória e confiança. Outros pedem com insistência para serem livres do inimigo. Alguns pedem honras e dignidades; outros perfeita quitação de suas dívidas; outros, ser livres do cárcere desta vida; outros desejam ter que responder as acusações e objeções do divino juízo.

Diante de todas as coisas coloquemos no primeiro lugar de nossa oração – que é a entrada dela – uma sincera ação de graças; e em segundo lugar suceda a confissão e contrição (dos pecados), que brote no íntimo afeto de nosso coração; e depois destas duas coisas expressemos nossas necessidades ao nosso Rei, e façamos-Lhe nossas petições.

Esta é uma boa ordem e maneira de orar, a qual foi revelada por um Anjo a um dos monges.” (1)

São João Clímaco foi um monge do Monte Sinai (séc. VII), e deve o seu codinome a um livro de sua autoria – “Escada para o paraíso”.  Clímaco é uma alusão à palavra “klímax”, que em grego significa escada.

Em “Escada para o Paraíso”, a escada é um resumo da vida espiritual, concebida para os solitários e contemplativos, uma obra que influenciou a conduta de vários religiosos, tanto no Ocidente quanto no Oriente.

São João Clímaco explica que existem 30 degraus a serem galgados, para que se atinja a perfeição moral (alusão à escada de Jacó – Gn 28,12).

Para o Monge, a oração é a mais alta expressão da vida solitária; desenvolvendo-se pela eliminação das imagens e dos pensamentos.

Esta reflexão renova em nós o gosto pela oração, “o fio da virtude” de nossa vida, para que bem possamos nos apresentar diante do Senhor, sempre de coração puro, sem multiplicação de palavras, e/ou com palavras elegantes, mas de pouco valor.

Bem disse o Senhor que, quando rezarmos, não precisamos multiplicar palavras, e ainda: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e fechando tua porta, ora a teu Pai que está lá, no segredo, e teu Pai, que vê no segredo, te recompensará” (Mt 6,6).

Façamos da Quaresma um tempo favorável de salvação, acompanhado de autêntica, frutuosa, sincera e confiante oração diante de Deus.


(1) Lecionário Patrístico Dominical – Editora Vozes – p. 306-308 - Memória celebrada no dia 30 de março.


“O amor é um abismo de luz, uma fonte de fogo”

                                                    

“O amor é um abismo de luz, uma fonte de fogo”

O monge São João Clímaco (séc. VI) nos apresenta, no trigésimo degrau da Escada Santa, “o amor”, como vemos:

“O amor: sua natureza e semelhante a Deus (...) sua ação: embriaguez da alma; sua força própria: fonte da fé, abismo de paciência, oceano de humildade.

O amor, a liberdade interior e a adoção filial não se distinguem senão pelo nome, como a luz, o fogo, a chama.

Se o rosto de um ser amado (...) nos torna felizes, que não fará a força do Senhor quando vier secretamente habitar a alma purificada?

O amor é um abismo de luz, uma fonte de fogo. Quanto mais ele corre, mais queima aquele que tem sede (...) Eis porque o amor é uma progressão eterna”.

Ser discípulo missionário é propor-se a subir esta “escada santa”, degrau por degrau, até chegar ao seu ápice, que consiste no amor.

Asim somos conhecidos como discípulos do Senhor: se nos amarmos uns aos outros como Ele nos amou, assim como ele próprio afirmou (Jo 13,35).

Roguemos a Deus, para que jamais desistamos desta subida, incansavelmente, até que alcancemos este “abismo de luz” e “fonte de fogo”, como nos falou o monge.

É tempo de formar comunidades que vivam como as primeiras comunidades cristãs, perseverantes na Doutrina dos Apóstolos, na fração do Pão, na comunhão fraterna e na oração.

Tudo isto em perfeita sintonia com as novas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja do Brasil (2019-2023), a fim de construirmos comunidades como uma casa, com seus quatro pilares indispensáveis: o pilar da Palavra, do Pão, da Caridade e da ação missionária.


PS: A Escada Santa, 30º degrau – citado em Fontes: Os Místicos Cristãos dos primeiros séculos – textos e comentários – Edições Subíaco – p.224
Memória celebrada no dia 30 de março.

Nossa miséria diante da Misericórdia Divina (IVDTQC)

 


Nossa miséria diante da Misericórdia Divina

“Sentei-me na indigência, levantei-me pelo desejo de Teu Pão”
 
O Bispo e Doutor da Igreja, Santo Agostinho (séc. IV), nos apresenta um “Comentário ao Salmo 138,5-6”, num paralelo com a passagem do Evangelho de Lucas (Lc 15,15-32), na qual encontramos a parábola do filho pródigo.
 
De longe penetras meus pensamentosconheces meu caminho e meu descanso, todos os meus caminhos Te são familiares.
 
O que significa ‘de longe’? Enquanto ainda estou no caminho antes de chegar à pátria, Tu penetras meus pensamentos. Acolhe àquele filho mais novo, pois também ele se tornou corpo de Cristo, Igreja procedente da gentilidade. E o filho mais novo tinha emigrado para um país distante. Porque havia um homem que tinha dois filhos: o mais velho não tinha se distanciado, pois trabalhava no campo, e simbolizava aos santos que, no tempo da lei, cumpriam suas obras e seus preceitos.
 
Por outro lado, o gênero humano, que havia se rebaixado ao culto dos ídolos, tinha emigrado para um país distante. O que mais longínquo daquele que Te fez, do que a forma que tu mesmo fizeste?
 
Assim, o filho mais novo emigrou a um país distante, levando consigo toda a sua fortuna e – conforme nos informa o Evangelho – a desperdiçou vivendo dissolutamente. E começando a passar necessidade, foi e arranjou-se com um homem importante daquela região, e que o mandou cuidar dos porcos. Tinha desejo de saciar sua fome com a comida dos porcos, e ninguém lhe dava de comer.
 
Depois de tanto trabalho, penúria, tribulação e necessidade, lembrou-se de seu pai, e decidiu voltar para casa. Pensou: voltarei para meu pai. Agora, reconhece a sua voz que disse: sabes quando me sento, ou me levanto.
 
Sentei-me na indigência, levantei-me pelo desejo de teu pão. De longe penetras meus pensamentos: por isso o Senhor disse no Evangelho que o pai pôs-se a correr ao encontro do filho que regressava.
 
Realmente, como de longe tinha penetrado em seus pensamentos, conheces meu caminho e meu descansoMeu caminho, diz. Qual caminho, a não ser o mau, ao qual tinha percorrido afastando-se do pai, como se pudesse ocultar-se aos olhos do vingador, ou como se pudesse ser humilhado por aquela extrema necessidade ou ser combinado que cuidaria dos porcos, sem a vontade do pai que queria castigá-lo ao longe, para recebê-lo em seguida?
 
Desta forma, como um fugitivo capturado, perseguido pela legítima vingança de que Deus nos castiga em nossos afetos, em qualquer lugar que formos e em qualquer lugar que tivéssemos chegado; como um fugitivo capturado – novamente repito – diz: Conheces meu caminho e meu descanso. Aquela minha meta distante não era longínqua aos Teus olhos: Afastei-me muito, e Tu estavas aqui. Conheces meu caminho e meu descanso.
 
Todos os meus caminhos Te são familiares. Conhecia-os antes que por eles eu andasse, antes que eu caminhasse por eles. Permitiste que eu os percorresse na fadiga, os meus próprios caminhos, para que, se em algum momento decidisse abandonar este caminho árduo, regressasse aos Teus.
 
Por que não há fraude em minha língua. Por que disse isto? Porque, confesso-Te, andei por meus caminhos e me afastei de Ti; separei-me de Ti, como se estivesse indo bem, e o meu próprio bem foi um mau para mim sem Ti. Pois se fosse bem sem Ti, talvez não quisesse voltar a Ti. Por isso, confessando estes seus pecados, declarando que o corpo de Cristo está justificado não por si mesmo, mas pela graça de Cristo, disse: Não há fraude em minha língua”. (1)
                     
“Sentei-me na indigência, levantei-me pelo desejo de Teu Pão”. A experiência do filho mais novo, longe de qualquer condenação ou execração de nossa parte, é como que um espelho para que nele nos reconheçamos.
 
Também podemos, pelo pecado, macular a veste batismal, sobretudo quando nos curvamos diante dos pecados capitais (soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça).
 
O pecado de múltiplas faces pode nos fazer sentir como o próprio filho mencionado na Parábola, como que sentados na indigência, sob o peso do pecado, com arrependimento e desejo de conversão e de nova mentalidade e atitudes, como expressão de uma necessária “metanoia”, mudança total de nosso ser e busca de novos caminhos, expresso no desejo do pão, que pode ser traduzido em perdão, misericórdia, ternura e bondade divina, que jamais nos desampara e nos abandona. 
 
Sentados na indigência, cansados e extenuados, porque o pecado nos rouba as forças, rever caminhos, voltar para o abraço acolhedor e terno do Pai que nos ama com amor incondicional.
 
É sempre tempo de revermos quantas vezes também fizemos a experiência de sentar sem coragem, sem forças, vivenciando a condição da miséria que nos leva a cair, mas fomos ao encontro do Pão da Vida e da Eternidade, reconciliados, participamos do Banquete da vida, da alegria, numa grande festa que Deus quer conosco sempre celebrar.
 
Desejemos comer deste Pão saboroso, que a misericórdia divina tem a nos oferecer, que é o próprio Jesus, o Pão da Vida, o Pão da Imortalidade, o Pão do Amor e da Vida plena e feliz.
 
Não mais sentados na indigência, mas alimentados, revestidos por Cristo; com sandálias nos pés, ponhamo-nos num novo caminho, porque há mais alegria no céu por um só pecador que se converte do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão.
 
 
 
(1) Lecionário Patrístico Dominical - Editora Vozes - 2013 - pp. 569-570.  
 

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