Nossa miséria diante da Misericórdia Divina
“Sentei-me na indigência, levantei-me
pelo desejo de Teu Pão”
O Bispo e Doutor da Igreja, Santo Agostinho (séc. IV), nos apresenta um
“Comentário ao Salmo 138,5-6”, num paralelo com a passagem do Evangelho de
Lucas (Lc 15,15-32), na qual encontramos a parábola do filho pródigo.
“De longe penetras meus
pensamentos; conheces meu
caminho e meu descanso, todos os meus caminhos Te são familiares.
O que significa ‘de longe’? Enquanto ainda estou no caminho antes de
chegar à pátria, Tu penetras meus pensamentos. Acolhe àquele filho mais novo,
pois também ele se tornou corpo de Cristo, Igreja procedente da gentilidade. E
o filho mais novo tinha emigrado para um país distante. Porque havia um homem
que tinha dois filhos: o mais velho não tinha se distanciado, pois trabalhava
no campo, e simbolizava aos santos que, no tempo da lei, cumpriam suas obras e
seus preceitos.
Por outro lado, o gênero humano, que havia se rebaixado ao culto dos
ídolos, tinha emigrado para um país distante. O que mais longínquo daquele que
Te fez, do que a forma que tu mesmo fizeste?
Assim, o filho mais novo emigrou a um país distante, levando consigo
toda a sua fortuna e – conforme nos informa o Evangelho – a desperdiçou vivendo
dissolutamente. E começando a passar necessidade, foi e arranjou-se com um
homem importante daquela região, e que o mandou cuidar dos porcos. Tinha desejo
de saciar sua fome com a comida dos porcos, e ninguém lhe dava de comer.
Depois de tanto trabalho, penúria, tribulação e necessidade, lembrou-se
de seu pai, e decidiu voltar para casa. Pensou: voltarei para meu pai. Agora, reconhece a sua voz que
disse: sabes quando me sento, ou me
levanto.
Sentei-me na indigência, levantei-me pelo desejo de teu pão. De longe penetras meus pensamentos: por
isso o Senhor disse no Evangelho que o pai pôs-se a correr ao encontro do filho
que regressava.
Realmente, como de longe tinha penetrado em seus pensamentos, conheces meu caminho e meu descanso. Meu caminho, diz. Qual caminho, a não
ser o mau, ao qual tinha percorrido afastando-se do pai, como se pudesse
ocultar-se aos olhos do vingador, ou como se pudesse ser humilhado por aquela
extrema necessidade ou ser combinado que cuidaria dos porcos, sem a vontade do
pai que queria castigá-lo ao longe, para recebê-lo em seguida?
Desta forma, como um fugitivo capturado, perseguido pela legítima
vingança de que Deus nos castiga em nossos afetos, em qualquer lugar que formos
e em qualquer lugar que tivéssemos chegado; como um fugitivo capturado – novamente
repito – diz: Conheces meu caminho e
meu descanso. Aquela minha meta distante não era longínqua aos Teus
olhos: Afastei-me muito, e Tu estavas aqui. Conheces meu caminho e meu descanso.
Todos os meus caminhos Te são familiares. Conhecia-os antes que por eles eu andasse, antes que eu caminhasse
por eles. Permitiste que eu os percorresse na fadiga, os meus próprios
caminhos, para que, se em algum momento decidisse abandonar este caminho árduo,
regressasse aos Teus.
Por que não há fraude em minha língua. Por que disse isto? Porque, confesso-Te, andei por meus caminhos
e me afastei de Ti; separei-me de Ti, como se estivesse indo bem, e o meu
próprio bem foi um mau para mim sem Ti. Pois se fosse bem sem Ti, talvez não
quisesse voltar a Ti. Por isso, confessando estes seus pecados, declarando que
o corpo de Cristo está justificado não por si mesmo, mas pela graça de Cristo,
disse: Não há fraude em minha língua”.
(1)
“Sentei-me na indigência, levantei-me pelo desejo
de Teu Pão”. A experiência do filho mais novo, longe de qualquer condenação ou
execração de nossa parte, é como que um espelho para que nele nos reconheçamos.
Também podemos, pelo pecado, macular a veste batismal, sobretudo quando
nos curvamos diante dos pecados capitais (soberba, avareza, luxúria, ira, gula,
inveja e preguiça).
O pecado de múltiplas faces pode nos fazer sentir como o próprio filho
mencionado na Parábola, como que sentados na indigência, sob o peso do pecado,
com arrependimento e desejo de conversão e de nova mentalidade e atitudes, como
expressão de uma necessária “metanoia”, mudança total de nosso ser e busca de
novos caminhos, expresso no desejo do pão, que pode ser traduzido em perdão,
misericórdia, ternura e bondade divina, que jamais nos desampara e nos
abandona.
Sentados na indigência, cansados e extenuados, porque o pecado nos
rouba as forças, rever caminhos, voltar para o abraço acolhedor e terno do Pai
que nos ama com amor incondicional.
É sempre tempo de revermos quantas vezes também fizemos a experiência
de sentar sem coragem, sem forças, vivenciando a condição da miséria que nos
leva a cair, mas fomos ao encontro do Pão da Vida e da Eternidade,
reconciliados, participamos do Banquete da vida, da alegria, numa grande festa
que Deus quer conosco sempre celebrar.
Desejemos comer deste Pão saboroso, que a misericórdia divina tem a nos
oferecer, que é o próprio Jesus, o Pão da Vida, o Pão da Imortalidade, o Pão do
Amor e da Vida plena e feliz.
Não mais sentados na indigência, mas alimentados, revestidos
por Cristo; com sandálias nos pés, ponhamo-nos num novo caminho, porque há mais
alegria no céu por um só pecador que se converte do que por noventa e nove
justos que não precisam de conversão.
(1) Lecionário Patrístico Dominical - Editora Vozes
- 2013 - pp. 569-570.
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